Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)

quarta-feira, agosto 31, 2005

lição mal estudada

não sejas assim
não sejas assim
não sejas assim
não sejas assim
não sejas assim
não sejas assim
não sejas assim
não sejas assim
não sejas assim
não sejas assim
não sejas assim
não sejas assim
não sejas assim
não sejas assim
não sejas assim
não sejas assim
não sejas assim
não sejas assim
não sejas assim
não sejas assim
não sejas assim

coisas

às vezes escrevo assim estas coisas parvas. é de tarde e os meus olhos ameaçam fechar-se de sono. no entanto, o barulho dos carros, lá fora, mantem-me em leves cabeçadas no vazio. uma ou outra pessoa passa, mas são as máquinas, meu deus, as máquinas, as gravações das vozes na instalação sonora, que me aguentam aqui.

às vezes tenho este tipo de ideias parvas. olhar pela pequena janela dos fundos e espiar uma rua onde quase não passa ninguém. esperar ver, assim, tão visivelmente escondido, alguém que sai de um prédio a que não pertence. identifico-a pelos cabelos, ou não, a voz, ou não, o tom levemente bronzeado das férias.

às vezes acabo mesmo por bocejar na frente de estranhos. imagino sempre noites sossegado que acabam por nunca acontecer. um amigo, um trabalho, uma rumba, em cima da hora. outra coisa qualquer como, por exemplo, eu mesmo. o sono, a falta de razão, a solidão, nada disto a servir como desculpa. às vezes, coisas parvas, nada mais.

canção seis - e tudo o vento levou

Eu vou desafinar
desafinar tão completamente
que quando eu me calar
tu vais ficar contente

canção cinco - Entrando no Hit Parade

eu sei bater as palmas
mexendo as minhas ancas
eu faço umas cantigas
eu tenho as minhas pancas

eu sei fazer o swing
eu sei falar espanhol
eu hei-de ser um King
do mundo rock n'roll

canção quatro - onde tudo poderia ter acabado

quem não sabe cantar
fica calado

canção três - not the smartest one

são peque-pequenas as minhas manhãs
gasto-as inteiras a comer romãs

são dif-difíceis todas as decisões
nunca as tomo sem olhar para os botões

são compre-compridas as tuas mensagens
tenho-as guardadas nas minhas garagens

prontos.

canção dois (radio edit)

Little Mishka went to school
ia ia iô
And Little Mishka he was cool
ia ia iô
and then a man said yes
and then a man said no
Little Mishka's head was turning around

Little Mishka went back home
ia ia iô

canção um

Qual
é
Qual
a
Palavra?

dez segundos para a hora marcada
e nunca nada nada nada

Qual
é
Qual
a
Solução?

eu sei que tu bates à porta
mas prefiro ouvir um não

Qual
é
Qual
o
Poema?

podias andar de um lado para o outro
e sempre torto torto torto

terça-feira, agosto 30, 2005

marinheiro

não te vou dizer agora do mar, nem das chuvas, nem dos peixes que saltam mar fora, não. o que eu te digo é que estou cheio de azul, um azul deste prata, tamanho de globo em enxurrada, maré cheia sempre. não tenho medo, aqui. só um pouco aquela magia desastrada de estar afastado, de estar longe. sozinho não: os poucos homens que gastam aqui os dias a deixar crescer a barba juntam-se como irmãos, criam pequenas amizades que não quebram, pelo menos enquanto estivermos sobre chão instável.

não te vou dizer agora da lua, dos pássaros migrantes, das luzes de que não nos apercebemos. era uma sugestão de forma de sereia, aquela que terias para me dar em resposta e eu sou dos poucos que não lhes ouve os cantos, encantos. um marinheiro tem uma escrita muito mais simples do que a minha. pega desajeitado na caneta, sabendo de antemão qual o balanço do barco, e resiste, de igual forma masculina, quer aos vómitos quer às lágrimas.eu não sou assim, e assusto-me a cada onda, a cada grasnar.

não te vou dizer agora do amor, do sentar, das marés. não te vou dizer da saudade, da solidão, da esperança. sabes que o meu emprego é fugir, de verdade te digo que me assusta menos o mar do que a terra. aprendo a viver minuto a minuto, não, nem isso, aprendo a viver balanço a balanço, porque aqui os minutos não interessam, nunca se vai a lado nenhum com o relógio, tudo se vê pelo céu e pelas estrelas. não te vou dizer nada a mais do que aquilo que estas palavras têm para te dar. e o que isso é, nem eu sei bem.

segunda-feira, agosto 29, 2005

aprender a citar

Adeus: palavra habitualmente utilizada na poesia portuguesa; fórmula iniciática de saudade. Pode ser encontrada noutras literaturas, sempre transvestida de outras sonoridades e intenções díspares. Resulta muito bem em cartas de amor, contos da diáspora e despedidas da vida pública. Raramente é definitiva, excepto quando acompanhada de gestos infelizes de um ser humano em relação a outro.

in O meu dicionário é maior que o teu, Afonso Guímaro, Casa de Edição Francisco Massena, Lisboa, 1901.

Um Adeus - possibilidade visual

Atenção!
Preparar para a descolagem.

Três

dois

um

Adeus!

Um Adeus - possibilidade falhada

Li, uma vez, um livro que falava de armas.
Sim,
armas.
Aquele tipo de objectos, de tom enegrecido,
que se carregam nas mãos quando os nossos olhos
abandonam os tons sossegados das primaveras.
Li o livro, do princípio ao fim. De uma fiada.
Não sei se o percebi logo, como não sei quanto tempo demoro a perceber as coisas,
tal foi a força com que me agarrou na camisa, à altura do peito,
e me empurrou contra as paredes do quarto fechado.
Armas,
era de armas que falava.

Um Adeus - possibilidade primeira

Agora já não te vou dizer mais nada
[o verão acabou e as conversas eram só um passatempo nas mesas dos cafés.
havia que ocupar um pedaço de areia, da mesma maneira que outros homens carregam,
muito bem presas nos seus braços, meninas de cabelos arranjados]
Tudo isto, que pode ser muito doloroso de ouvir, de dizer,
é uma simples matéria do curso de educação sentimental.
Tu, não te podes queixar da minha extrema severidade,
da mesma forma que eu não me vou desiludir
com a tua insonsa fuga para um mundo mais rosa.

[ainda assim lembro, em flashback a preto e branco,
o dia em que chegaste, loura e brilhante, perto de mim,
com as tuas mãos em concha sobre o peito decotado
e um piscar de olhos satisfeito com a minha atrapalhação.
o que fica no roteiro do filme é uma frase muito pouco enigmática:
os rapazes tímidos, esses seres infinitamente cruéis com os mundos possíveis]

Lembro-me de coisas que não te vou repetir,
agora que tudo ficou decidido contra nós.
Podes muito bem ligar-me a meio da noite, dizer que me amas,
tal como podes continuar a mandar as sete cartas por semana
onde insistes em fazer com que eu saiba tudo de toda a tua vida.
No fundo, essas coisas são as banalidades que eu tenho que aceitar.

Da minha parte, seguirei fazendo a estrada
com pequenas paragens em que guardo as chaves no bolso
e dou passeios por caminhos que não conhecem pés.
Tu sofres, mas eu gosto de ser assim,
lamentavelmente independente.
E então, em vez de acabar poemas aos tropeções,
como um amigo meu que ficou um dia apaixonado por uma francesa,
bato a porta com força e deixo-te a chorar baixinho.
Adeus.

barulho

eu estou à escuta atrás da porta, não vem ninguém. absoluto silêncio pelo corredor, pela casa inteira, adivinho. eu estou à escuta atrás da porta porque, de facto, pareceu-me ouvir algo durante a noite. um barulho, um silêncio, passos. pareceu-me ouvir algo, algo que durou a noite inteira.

eu estou à escuta atrás da porta, a porta fechada no trinco, deste lado. fechada no trinco com duas, três voltas, eu estou aqui. estou à escuta e, agora, parece que não oiço nada, nem me oiço a falar, nem me oiço a pensar. eu estou aqui, mas aqui nem sei se estou, se não sou capaz de me ouvir.

eu estou à escuta atrás da porta, passos, barulhos, sons, a noite inteira. eu estou à escuta e tranquei a porta, a porta trancada é que tem de ser. porque onde há barulho, de noite, há o meu medo que cresce, que cresce como o cabelo, as unhas, a barba. eu estou à escuta atrás da porta, será que alguém fala? e a mim parece que não oiço nada.

janela com vista para o mar

era de manhã, logo de manhã, o ar fresco, quando ao abrir da janela, ela sorria. quando ao abrir da janela, a brisa mais fresca a entrar pela janela, as vozes de pescadores em baixo, o mar, o mar. o ar fresco, salgado, forte, uma mistura de todas as coisas que ficam escritas na nossa pele quando despimos a roupa.

era de manhã, logo de manhã, algumas coisas gaguejadas na solidão do quarto. ao abrir da janela, ao ouvir aquele estrondo suave do mar, os barcos ao fundo. logo de manhã, quando o sol ainda preguiça, quando os homens se espreguiçam, o mar. na face o encontro de todos estes pequenos sentidos. ela sorria.

era de manhã, logo de manhã, quando ao abrir da janela, o voo das gaivotas sobre os telhados.um jardim feito de flores salgadas, uma mão estendida para saber se chovia. os olhos muito concentrados nas ilhas, ao longe, o ar fresco, a brisa salgada, as vozes, as vozes dos pescadores. logo de manhã, na mistura de todas as coisas. dentro dela.

sábado, agosto 27, 2005

escuro

o meu lado escuro é onde arde breve o lume que te mereço, uma lua que se vai desfazendo em chuva, uma menina alemã que me pisca o olho pela noite. o meu lado escuro é andar de t-shirt mesmo quando faz frio, a exibir como são fortes os pelos do meu braço. o meu lado escuro é conseguir articular palavras ao teu ouvido, mesmo quando tu não ouves.

o meu lado escuro é um adeus que eu te disse, há alguns meses atrás. é uma pequena pedra que eu trazia no bolso e que me apeteceu mandar, em voo, por cima da relva do jardim. são violinos a ecoar, ao longe, mas tão dentro dos meus ouvidos. o meu lado escuro é esta manhã, fresca e alucinada, num copo vazio. um abraço que não existe e muitas outras palavras que desconheço.

o meu lado escuro, esta lua apagada agora pelo chão, fazendo-se fogo de cada vez que soletras o meu nome. a tua voz frágil e quebrável, os teus braços pequenos e aconchegantes. o meu lado escuro é toda a guerra que invento por fora, escondendo o que trago por dentro. a minha cara de mau, a minha língua de fora, a minha palavra feia. o meu lado escuro sou eu, do lado de dentro.

se eu oiço bem

que horas são, manhã, um pedaço de homem enterrado no quintal da casa de campo, que horas são, uma voz que chama alguém, ou só pergunta, um pedaço de homem, uma mão que quer segurar, que quer estar segura, que horas são, manhã, se eu ouvir bem, que horas são, mamã, mamã.

que horas são, mamã, quem sabe uma criança ali parada, sentada numa pedra no meio do quintal, a casa de campo, que horas são, mamã, mamã, uma criança talvez, ali deixada perdida, ali deixada esquecida, estendo o seu pequeno braço, que horas são, que oração, se eu oiço bem, mamã, mamã.

que oração, mamã, que oração, mamã, uma criança, um pedaço de homem, sentada numa pedra, enterrado no chão do quintal, a casa de campo, que horas são, que oração, manhã, mamã, seu eu oiço bem, uma criança abandonada, um pedaço de homem enterrado, mamã, manhã, que horas são, que oração, mamã, mamã.

um

vou-te escrever um
poema
vou-te escrever um
poema
de um tamanho que não vais conseguir tê-lo nos teus
braços
vou-te escrever um
poema.

face

começou com a história da face, um beijo, não, a pele suave de um beijo, um beijo por dar, por imaginar, passar ao lado sem reparar, era dantes, não saber onde as pessoas estão, era dantes, agora está toda a gente aqui, aqui na minha porta, eu sentado num cadeirão a deixá-los entrar, começou com a história da face, ou aquela música do jorge palma, cara de anjo mau.

era uma mulher muito muito bonita, trazia uma criança pela mão, mas não era sua filha, não podia ser sua filha, simplesmente porque era uma mulher muito muito bonita, daquelas por quem se fica apaixonado, que vão a nossa casa e a dominam como sempre lá tivessem vivido, era uma mulher muito muito bonita, daquelas que se levam pela mão.

e tudo o resto era uma simples inquietação, a história da face, do beijo, do beijo por dar, por imaginar, porque tudo o resto era a distância e a ausência, um sorriso, todos os temas sempre a dizer a mesma coisa, era uma mulher muito muito bonita, não só aos meus olhos como perante toda a humanidade, tão bonita tão bonita, como a história da face.

sexta-feira, agosto 26, 2005

macieira

a maçã do rosto debaixo da corrente de água. despida. uma luz, que podia ser do sol, que podia ser de alguém, deixando-se a olhar, fixamente, para a cor vermelha. a maçã do rosto, assim, ausente e querida, difícil de compreender. uma mão que a segura e uma mão que a acaricia. alguém. um homem.

a maçã do rosto, lavada. águas quentes sobre a pele, quentes lábios que a beijam. abraçar, solitariamente, o invisível e subir, subir pelas nuvens até mais alto que o céu visto pelos olhos. palavras difíceis, mãos que seguram. segurança. a maçã do rosto arrumada, debaixo do braço. abraço. um homem.

a maçã do rosto, um beijo, um aceno, adeus. uma luz, que podia ser do sol, podia sim, chega e toca-lhe de mansinho. palavras, palavras difíceis de soletrar, mensagens perdidas, mares demasiado grandes. a maçã do rosto, a maçã dos lábios, os lábios por habitar, como uma casa dentro de um poema. um homem.

quinta-feira, agosto 25, 2005

tinha um nome qualquer

tinha um nome qualquer, um nome qualquer e uma data certa para chegar, certa ou acertada, era mais ou menos isso que se quereria dizer no final da história, mas uma história, o que é um conjunto de frases quando nenhuma frase faz sentido para explicar o que quero sentir agora?

tinha um nome qualquer, uma maneira de começar os parágrafos sempre igual, qualquer coisa para enjoar a nova vaga de intelectuais para quem tudo é mal feito. uma história, perguntam eles. uma história, pergunto eu. frases em cima de frases, sem gente dentro, sem perfume dentro, sem nada.

tinha um nome qualquer, uma coisa sem significado para apresentar aos distraídos. tinha um nome qualquer, dizem uns aos outros, sem se entenderem. não é livro nenhum, é um amontoado de frases. história, faça-a quem lê, eu estou farto. e depois, um amontoado até acaba por ser bonito.

tinha um nome qualquer, uma cara qualquer, uma forma qualquer de ser, uma maneira de sair das coisas, um olhar para entrar na nossa vida, um telefone para se intrometer, um jornal para se distrair, uma televisão para desligar, um mundo inteiro para dominar.

tinha um nome qualquer. tinha um olhar qualquer. tinha qualquer coisa de qualquer coisa. eu sei, estás aí a ler-me e a pensar que eu não vou te dizer nada. não, não vou. não vou dizer. vou ficar calado. porque o que me resta a dizer pode muito bem ser balbuciado. e eu estou mais que cansado.

cordão

a minha mão ou uma letra maiúscula, dez segundos depois, a meio da noite, eras tu e eu, mais alguém, talvez, na sala, uma viagem para fora da Ibéria e uns trocados no bolso. a minha ou o extracto do multibanco, todos os dias a espreitar a carteira vazia, pensar, não, não é nada disto, não é por aqui, andar para a frente e fazer, fazer o que seja, parado.

a minha mão, uma letra maiúscula, o gás da água a borbulhar nos meus olhos, dez segundos, uns trocados, uma corrente de ar pela casa inteira, eu lá, eu fora, uma viagem para fora, para um lado qualquer, três encontros desencontrados, um grupo de gente que joga cartas, não, a carteira vazia, não é nada disto, uma letra maiúscula, será.

a minha mão ou uma letra maiúscula, um caderno deixado por escrever em cima da mesa, a luz apagada, tu, eu, tu, eu, quem, alguém, uma noite inteira e uma viagem, não é por aqui, não ser por aí, uma noite inteira, uns trocados, uma cerveja tirada do balcão de um café cheio, a letra, a mão, eu, tu, a minha mão ou uma letra, uma letra maiúscula.

silêncio

o teu silêncio é: deixa-te levar, para onde não sei, só assim, deixa, deixa-te.
um almoço a dois com vista para o mar, a reunião de olhares salgados.
o teu silêncio é: não sei contar uma história, provavelmente não tenho nada para dizer.
é isso que eu penso, talvez não saiba mesmo é contar coisa nenhuma.
quantas moedas tenho no bolso?
o teu silêncio é: não saber que palavras usar, não fazer ideia de quantas pessoas saem daqui.
uma espécie de ausência, uma espécie de sede, uma espécie de espécie em vias de extinção.
era de manhã e depois,
era de tarde e depois,
era de noite e depois.
o teu silêncio é: não consigo decorar o tamanho dos teus dentes na minha pele.
não saber mexer a boca.
fechar a porta.

calendário

era
era
assim
uma vez sem exemplo, dizia ela, uma vez só e depois nunca mais
era
era para ser
mas
depois
depois houve uma outra vez
e
uma e outra e outra vez
era
era
era para ser, sem exemplo, uma e só uma vez
mas
mas
depois
depois
depois
depois.

quarta-feira, agosto 24, 2005

coisa sem fim

descobri um rio no meio da noite. não, eu não andava pelo meio dos bosques. descobri um rio dentro de mim. estas são as coisas babadas que dizemos quando estamos sozinhos. dizemos isto e depois viramo-nos para o outro lado da cama, adormecemos. se alguém nos ouve, um vizinho com insónias, pensa, oh, mais um desgosto de amor. mas qual desgosto, é só um rio no meio da noite.

descobri um rio no meio da noite, era isso que eu tinha para dizer, não era? onde corria? o seu a seu tempo. era de noite, algum barulho, a casa vazia. tantas coisas entretanto já ditas, sempre a mesma coisa. a repetir-me, a repetir-me, eu? o barulho e vizinhos nenhuns. um rio, um rio debaixo da casa e era de noite. o meio da noite. o rio dividiu-a. de um lado eu, do outro lado eu. era isso, era assim.

(é de noite e não me apetece escrever mais. so good night)

jogo da moeda

cheira a novo aqui, ou isso ou a minha mão fechada sobre o tampo da mesa, os olhares que se estudam mutuamente, alguém que diz, uma, alguém que sorri, cheira a novo aqui, uma sala iluminada, alguém que sorri, alguém que diz três.

cheira a novo aqui, copos bonitos sobre a mesa, uma garrafa que escorre para dentro deles, um indicador que não indica nada, alguém que diz, quatro, alguém que sorri, os olhares que se estudam mutuamente, e mais um copo.

cheira a novo aqui, ou isso ou as nossas mãos fechadas sobre o tampo da mesa, o tempo na mesa, tudo tão devagar, alguém que sorri, alguém que está sério, alguém que diz, seis, alguém que está calado, e mais um copo, os olhares que anseiam, alguém que diz zero, mãos que se abrem.

terça-feira, agosto 23, 2005

sempre

eu estava sempre a dizer a mesma coisa. toda a roupa igual dentro do guarda-fato. eu estava sempre a dizer, a dizer mesma coisa. e depois calei-me, tal era insuportável aquela forma de tentar encontrar o silêncio no nunca estar calado. o silêncio aparece quando duas pessoas falam o mesmo. há quem lhe chame harmonia. eu chamo-lhe limpo.

o jornal chegava sempre a horas marcadas. eu escolhia os lugares onde me sentar de entre todos os lugares que me incomodavam. não havendo o lugar ideal, que nunca há, procura-se aquele onde dói menos. eu estava sempre a dizer a mesma coisa, e agora silêncio. silêncio, é onde eu quero estar calado. e acima de tudo, nada ouvir.

toda a roupa igual dentro do guarda-fato. era como se assim fosse e pronto. o jornal, dobrava-se e deixava-se em cima da mesa. eu ligava e desligava o telefone da ficha, incontactável para tudo o serviço. era de dia e era de noite, era outra coisa qualquer. eu estava sempre a dizer a mesma coisa, ou não? o silêncio. eu chamo-lhe limpo.

segunda-feira, agosto 22, 2005

por fim te digo

estás a comer as palavras: estás a comer as palavras/ e eu não te entendo. tentar fazer as coisas como se fazem os poemas - isso - ou então sair a correr de casa com os sapatos ainda por calçar, a camisa por abotoar: era isso que eu queria, e digo o teu nome baixinho, era isso que eu queria, poder viver dentro de um filme francês e estar apaixonado.

estás a comer as palavras [ou] estás a ficar sem rede [ou] sabes que horas são? é que tenho o comer ao lume e o autocarro nunca mais chega. era disto que eu te queria falar, se tu viesses, um dia, ao café comigo. mas há gente a mais na tua vida, gente a mais de maneira que eu já não vou caber. porque os relacionamentos amorosos são como os carros comerciais: só têm dois lugares e é proíbido (tanto como doloroso) levar alguém na mala.

estás a comer: palavras que vão e vêm de dentro da tua boca, eu sem perceber nada. tentar fazer as coisas como se fazem poemas, uma caneta, um caderno (pode até ser a toalha de mesa do restaurante onde como esta sopa), deixar que as palavras escorreguem pelo braço, mexam nos dedos, dominem a caneta e pronto. e eu ali sentado a pensar, filmes franceses, raparigas que falam baixinho. estar apaixonado.

bica curta

não me venhas com "pareces", o tempo está cada vez mais curto, como as bicas que bebes, para deixares ao abandono o meu coração alterado. serias capaz, eu sei-o tão tão bem, de me dizer amor em minúsculas, enquanto do outro lado de um qualquer oceano as tuas mãos azuis abriam corpos de doentes terminais. não me venhas então com as meiguices, nem com os olhos bonitos, nem com o nariz empinado. outra bica curta, se faz favor, e traga-me o cinzeiro.

não me venhas com "pareces", essa palavra que não existe em nenhum dicionário mas que tu insistes em tornar plural, não só na gramática, mas sobretudo na nossa vida a dois, a nossa vida sem princípio nem fim porque, simplesmente, tu nunca quiseste ser a Senhora Eu e eu nunca perdi o meu tempo a explicar o natal às criancinhas mais do que duzentas e trinta e sete vezes. não tenho paciência, não tenho mesmo paciência. e depois hoje é sábado, e aos sábados eu gosto de ouvir música calma enquanto o sol cai sobre o mar. inspiro o fumo.

não me venhas com "pareces", não me venhas com dedos finos, não me venhas com beijos que não são sinceros. eu estou a acabar de sair de mim, ajudas assim só me puxam para o buraco. eu sei, uma vez disseste-me que ias gostar de mim o tempo todo. eu acreditei em ti e comprei um fato e uma gravata. a vida direita. o olhar direito. e depois estavas enganada, e depois acabou-se a emissão televisiva, e depois faltou a luz. ainda estou à espera do tempo que chove outra vez, mas nunca mais te vou olhar em bicos de pés e pensar que te quero beijar. as coisas são mesmo assim. deixo uma moeda sobre a mesa e saio do café calado.

depois eu

hoje estou à procura de mim, ou não, estou hoje à procura de qualquer coisa, uma voz, uma voz sem pessoa, ou com, não sei, hoje estou aqui sentado e alguém entra na casa, a casa, sim, e depois eu estou à espera de alguém que não chega, ou se chega é para anunciar que partiu, pois, hoje estou aqui, hoje estou à procura de mim.

hoje está calor, e mesmo assim, todo este frio por dentro dos ossos, a boca que se fecha ao respirar, os dedos dos pés perdidos dentro dos sapatos, uma voz, uma voz só, querer ser capaz de dizer todas as coisas do mundo, e de entre todas essas coisas só saírem monossílabos e banalidades, sim, hoje está calor, ou será só desta roupa toda que trago vestida, hoje, calor.

hoje eu aqui e alguém que vai embora, é, nem sou capaz de fazer despedidas de jeito, vejo as pessoas a entrar no carro e eu sem dizer nada, se vem alguém é para anunciar que vai embora, hoje eu, hoje, ouvir prazer em conhecer-te, e nada, não ser capaz de falar, tenho dificuldades com as palavras, digo eu, e ninguém acredita, não ser capaz, eu a sair de casa e um até amanhã como se não fosse por imenso tempo, hoje eu aqui, alguém que vai embora.

Revista 365

Na edição especial de Verão da revista 365 vão poder encontrar um poema meu, "nove passos na escuridão" entre os nomes do índice.

Só custa 2 euros e está por aí à venda.

www.revista365.com

segunda-feira, agosto 15, 2005

Santa Cruz, Torres Vedras, Portugal (finalmente, férias)


Esta semana, é aqui que me encontram... Posted by Picasa

domingo, agosto 14, 2005

recado no espelho

Agora

vem com uma caneta

e risca

risca isto tudo...

egoconcentrado

é do temponocarro o calor a série de pensamentos fantásticos que os sonhos nos fazem ter
fantásticos não naquele sentido exuberante de vestir plumas, fantásticos naquele sentido doloroso de nos apartarem da razão habitual
e depois o sol a bater-nos na caraavermelhadaporelemesmo ter assim os bolsos cheios de pedras vazias
a tentação de tudo explicar, pedras vazias ou pedrasvazias, ausência de sentido, quando não de sentimentos
aquelas horas todas de bico calado, o céu da boca em ferida, os pés assentes na mão de um polícia
e de repente falar uma línguaquenãovemnos livros, não era um polícia, era um policial, as estantes cheias de livros vindos do outro lado do atlântico, quando eu falo assim, digo, deste lado para esse, não sei se se pode compreender
e mais uma vez os pés, os pés no texto
o temponocarro a ouvir frequências de rádio que desaparecem, um poste de electricidade deitado abaixo por um incêndio, como é que eu explico isto ao meu filho, ao meu tenro filho
tão jovem na idadedeverascoisaspelaprimeiravez e eu sem palavras
mais uma vez, sem palavras, a ter que as encontrar mais cá por dentro, onde ninguém fala, onde eu passo só o tempotodo a ouvir-me.

sábado, agosto 13, 2005

palavra (outra vez)

uma lista de palavras é uma coisa extensa como um
dicionário
mas, por vezes, faltam-nos as palavras.
talvez estejam escondidas atrás de alguma pedra.

uma lista de palavras pode ser qualquer coisa de interminável.
uma vida é uma lista?
uma vida inteira de coisas escritas e ditas,
é uma lista?

uma lista de palavras é uma coisa extensa como uma
rua comprida onde nos perdemos.
em diversas encruzilhadas, pessoas com palavras
a quem perguntamos uma direcção.

perguntar? perguntar? perguntar?
como se nos servisse de alguma coisa.
há quem não queira gastar as palavras, connosco,
há quem já não saiba falar por se ter desencontrado das palavras essenciais.

uma lista de palavras é uma coisa extensa como um
texto que se acaba.

chat-o-matic

olá olá como estás? bem e vc? bem de onde és? do brasil e vc? de portugal o q fazes? sou nova aqui trabalho e vc? trabalho tb q idade tens? 23 e vc? 25 como é vc? linda e vc? feio fala sério? falei o q procuras por aqui? curtir e vc? morrer mais devagar tem foto? tenho e vc? tb deixa eu te ver? olha o perfil ok ok ;) e então? já viu? já é gato vc é mt gata tb q bom q vc gosta é casado? não e vc? tou noiva sério? sim quando é o casamento? início do ano q vem q bom é meu noivo é mt gato acredito quer ver foto dele? não deixa pra lá ok o que vc faz aí mesmo? trabalho já disse mas é brasileiro? não francês francês? sim hummm ok ok fala aí o q? o q vc quiser já tem fato de noiva? já comprei essa semana humm ok ok é mt bonito sei alice234 saiu da conversação

manhã

ser de manhã, sempre e em todas as ruas, não é um facto acidental, não é um olhar desviado da corrente, ser de manhã, sempre e em todas as ruas, é acordar para a luz que nos fere os olhos e corrói por dentro, atordoar o querer e o desejo, acreditar só naquilo que nunca nos ofereceram, ser de manhã, sempre, em todas as ruas, e em todo o lugar encontrar sempre aquilo de que se necessita, sem perguntas nem obstáculos.

ser da manhã, de amanhã, correr o campo em busca de girassóis e abraçar em sonhos somente os frutos da nossa imaginação. buscar, sempre e incessantemente, as àrvores da desmama, ter nos animais os mais creditados confidentes e correr, numa bicicleta, todos os cantos de uma aldeia. ser da manhã, de amanhã, não deixar que nos prendam os pulsos em correntes e, recorrentemente, cortas os cordões umbilicais, de modo a morrer de fome e renascer em todas as manhãs, amanhã.

ser de manhã, sempre e em todas as ruas, de amanhã ou de hoje, de aqui e de agora, de longe e de perto, ser grande e ser incerto, muitas vezes incorrecto, não com aquilo que o corpo pede mas com o que as ruas nos dão. ser de manhã, de amanhã, da manhã de outros dias em outras ruas, provavelmente, de outras palavras também, ser de um outro lugar e não ser de ninguém, querer e conquistar, arrumar em nós o sono dos outros, e despertar, despertar sempre e muitas vezes, amanhã, de manhã, da manhã, manhã, manhã.

procura

quero encontrar uma letra que consiga expressar
de uma forma inequívoca mas frágil
a certeza daquilo que digo com boca.

uma letra que eu procuro no abecedário
qualquer coisa antes do xyz da lista
pode ser maiúscula ou talvez minúscula.

uma, sóuma, letra. para a encontrar
hei-de ir ao fim do mundo ou talvez
a outro lado qualquer. mas vou.

um ou outrodia eu vou encontrar.
no meio do mundo
ou
no meio do mar.


don't you want me?

antigamente era assim: eu cravava as minhas unhas na tua carne fresca, de tão jovem, e tu ficavas a sorrir e a chorar até que se sentia um leve rasgão pelo impulso dos meus dedos a penetrarem-te. depois, ficavamos a ver o sangue a correr pelas tuas pernas abaixo enquanto me beijavas o pescoço.

depois: começamos a gostar de brincar com as mãos um no outro. batíamo-nos com frequência em joguinhos sexuais, mordendo com ardor os ombros e os seios um do outro. adormecíamos sempre com o corpo marcado, a mente saciada pelo prazer desviado da dor do desejo.

agora: comprei uma faca. é grande e brilha, até no escuro. vou passeá-la na tua pele, pelas tuas costas, pela tua barriga. então farei pequenos desenhos, deixarei ligeiras covinhas com a ponta da faca a sangrar. quero que chores, baixinho, a meu lado na cama. quero lamber-te as lágrimas e sentir-te o sangue no meu. quente.

sexta-feira, agosto 12, 2005

ladaínha em ré menor

quando eu casar, o meu corpo não será mais o meu corpo. hipnose académica, irei ao fundo das questões sensíveis e maritalmente contraditórias. encherei de orgulho mulheres e filhos de família, quando eu casar.

quando eu voar, os meus dedos não serão mais os meus dedos. qualquer coisa de ruim em mim acabará por degenerescer. irei compactuar com os piores assassinos e com alguns anjos, quando eu voar.

quando eu chorar, os meus olhos não serão mais os meus olhos, só uma piscina onde os amores passados poderão banhar-se, antes dos dias do sol. renascerei talvez em alguns corações apagados, quando eu chorar.

quando eu rimar, os meus lábios não serão mais os meus lábios. poder fazer de um beijo um alexandrino, poder costurar a boca pelas palavras certas. poderei então ir em descanso, quando eu rimar.

repetição

se eu me repetir, avisa, diz-me qualquer coisa ao ouvido. segura a minha mão sobre a mesa do restaurante, um homem lá fora a dizer adeus aos carros que passam, olha-me nos olhos e sorri. avisa, quando eu me repetir, porque não é uma hipótese que eu estou a pôr, é uma coisa que já sei que vai acontecer.

se eu me repetir, quando eu me repetir, sorri - segura a minha mão - avisa-me. podes dizer baixinho, como nas rezas que fazes nocturnamente, algures entre um jardim do lado de lá da cidade e uma embaixada do tamanho de outra cidade por dentro. se eu me repetir, porque me vou repetir, só isso.

se eu me repetir, aquela coisa que eu faço sempre, avisa-me. sorri, segura a minha mão, diz-me baixinho -pode até ser perto do ouvido, deve - e eu vou sorrir também, mãos dadas sobre a mesa do restaurante, um homem lá fora a dizer adeus aos carros que passam, quando eu me repetir, ou será que estou a insistir, avisa-me.

quinta-feira, agosto 11, 2005

2.

create

tenho um poder automático para recompor o estado de sítio da minha opinião.
querem ver?

create

rompi, logo ao nascer, as águas apertadas de minha mãe.
sou forte.

create

nunca esfolei o joelho.
só o meu pensamento sangra.

create

amigos, um ou dois.
nenhum de confiança.
sentenças, todas.
condenado.

create

era um belo dia de sol,
o que ela escolheu,
para me dizer que não me ama.
não me ama?

create

sou um ser impossível de ser amado.
há um certo discurso de posse que não combina.

create

gosto de olhar as pessoas na rua.
à distância.
existem contactos demasiado fortes nos olhares.
como nas constipações.

create

existem palavras iguais com significados diferentes.
percebi hoje.
quando eu digo gosto de ti
não significa o mesmo
quando tu dizes gosto de ti.

create

nada de ressentimentos.
o mundo continua a girar
e eu ainda tenho ouvidos para os conselhos da minha avó.

create

hei-de encontrar outras águas
para romper.

não me lembro

podia dizer, não me lembro. podia dizer, sonhei. podia dizer, repetidamente, as manhãs que nos acordam, os altifalantes. como é que te posso explicar? acabou-se a tinta da caneta que trazia no bolso da camisa. aconteceu isso enquanto eu tentava refazer a métrica de um verso. podia dizer, todos as espécies do mundo. podia dizer, uma morte, num romance. podia dizer, treze minutos depois do amanhecer, ali.

enfim, não me lembro. mas não me lembro mesmo. um problema de memória, pode ser. a mão, sobre o jornal, em cima da mesa. contar os espaços, os passos, que vão desde o amanhecer até ao aqui estar. saber, em formato compatível com a tua ilusão, reconhecer a medida de um abraço, de um queixo caído. podia dizer, afinal traga duas. podia dizer, eu quero a maior. podia dizer, era no fim da tarde, no fim do mundo.

porque, eu quero tanto o que não sei. porque, eu sou assim pequeno como os bichos por entre os dias de chuva. porque, eu não sei escrever coisas bonitas. entretanto, há um eu nesta história. os amanhãs que cantam, na minha vida, são as colunas de som do meu vizinho, de madrugada. sonhei? posso explicar? recuar ou recusar, não serão uma e a mesma coisa? e tu, onde estás a escrever, podes dizer, eu sou eu? quantos mais pontos de interrogação, mais pequenas mentiras. porque, podia dizer, não me lembro.

terça-feira, agosto 09, 2005

it sure looks like the end of a beautiful friendship

demasiado concentrado em mim diz:
começou a chover, aqui
demasiado concentrado em mim diz:
e tenho as janelas de casa todas abertas
Lili diz:
poético isso
Lili diz:
me poupe de poesia barata
demasiado concentrado em mim diz:
não
demasiado concentrado em mim diz:
nada poético
demasiado concentrado em mim diz:
começou realmente a chover
demasiado concentrado em mim diz:
e tenho realmente as janelas abertas
Lili diz:
feche-as
Lili diz:
simples
demasiado concentrado em mim diz:
porque raio eu haveria de ser poético?
Lili diz:
porque é manhã e chove...
demasiado concentrado em mim diz:
eu não estou em casa...
demasiado concentrado em mim diz:
e nunca sou poético
demasiado concentrado em mim diz:
eu digo sempre o que vejo
demasiado concentrado em mim diz:
a maior parte das vezes vejo mal
demasiado concentrado em mim diz:
e isso soa poético
demasiado concentrado em mim diz:
mas não é
Lili diz:
tu és chato como uma poesia de rimbaud se ele escrevesse ao 40
demasiado concentrado em mim diz:
o rimbaud é chato como uma criança perdida
Lili diz:
não ouses
Lili diz:
não ouses cristo menino
demasiado concentrado em mim diz:
o rimabaud é chato e ignorante
demasiado concentrado em mim diz:
tenho dito

contar as palavras: desespero

a minha garganta a arder. veneno.
o som do líquido que me corrói as entranhas neste à vontade desejante.
ser demasiado em todas as coisas.
apagado e vil. ou seja, o inferno, uma vez mais.

a minha garganta a arder. ventos fortes.
o som do líquido surdo, destruídor.
as partes desfeitas. sem sangue.
só a pele roxa. roxa como a cor roxa nos catálogos da morte.

ímpios. os meus seres e os teus. nada mais restará. no fim.

a minha garganta. a minha doce garganta, outrora fábrica de poemas e beijos.
hoje desfeita por mim. em chamas.
talvez por isso a chuva, sinal de um deus que algures existe.
e a minha boca aberta pela rua, desespero.

enfim, só.

a dúvida

estou para aqui na dúvida, se te telefono ou não. de repente, o inverno chegou ao verão e o tempo ficou cinza cinzento. ainda assim, as casas por dentro suam de calor de muitos graus que ainda dizem que estão por aí. mas podemos sair à rua e sentir o fresco que é este dia diferente dos outros últimos. e ser capaz de dizer a sorrir, alguma coisa mudou nas nossas vidas.

estou para aqui na dúvida, afinal hoje é terça-feira. faço contas de cabeça e ao gasóleo do carro, penso até onde tu serias capaz de me levar. algures na minha cabeça é de noite e eu sinto a tua mão a puxar pela minha, em ruas mais ou menos quentescuras, em bairros pequenos da capital. e ser capaz de dizer a sorrir, a minha vida a andar para a frente.

estou para aqui na dúvida, e aqui é este banco em que me sento a dactilografar cartas de amor. se me visses assim despenteado ias perceber que há toda uma ironia à minha volta, uma ironia que não deixa que me vejam e também impede que eu saia deste lugar. cada minuto em que eu penso, é um minuto em que não te digo nada. e ser capaz de dizer a sorrir, telefono.

domingo, agosto 07, 2005

nomes são substantivos

queremos que nos diga todos os nomes, todos mesmo. eu, sem expressão, não fazia ideia do que me estavam a falar. sentado no que me parecia ser um lugar estranho, mesmo que fosse um café, três homens de fato e gravata à minha frente. pareciam calmos, por enquanto. sim, talvez o ambiente ficasse mais pesado. eu não sabia o que estava ali a fazer, nem o que queriam de mim. mas já dava para perceber que não seria o lugar mais saudável para se estar. acenderam uma luz.

todos os nomes, está a perceber, todos os nomes. mas os nomes de quem? sabemos com quem anda envolvido. eu, sem expressão, pensava para dentro. com quem ando envolvido, com quem ando envolvido, com quem ando envolvido. estranha associação de palavras. ah, será isto? ando envolvido com palavras nocivas? é isso? a expressão dos três homens endureceu, pareciam agora rochas. não nos goze na cara, diga-nos os nomes. a luz na minha cara, eu sem perceber o que me queriam dizer, o que queriam de mim.

começava a ficar calor e eu suava. todos os nomes, todos os nomes. estávamos nisto há horas. três homens de fato e gravata a perguntar-me por uma coisa que não sabia como responder. depois de alguma incredulidade inicial, comecei mesmo a pensar que talvez eu fosse culpado de alguma coisa, parte integrante de uma conspiração. quanto mais pensava em nomes, menos capaz era de me lembrar de algum. começava agora a pensar que não sabia mesmo nome nenhum. e as gravatas impacientes, homem, dê-nos os nomes.

domingo

a cidade está deserta, deserta. consegue-se ouvir o nosso sangue a correr enquanto se sobem as ruas até casa. corre uma brisa, mas nada de evidente. a cidade está deserta. são poucas as pessoas que ficaram a almoçar por cá. todas as outras desapareceram. uma ou outra pessoa numa esplanada. ainda por cima a hora de maior calor. eu sem conseguir dizer nada de jeito.

oiço o meu sangue a correr, os meus chinelos a ecoar pela avenida e apercebo-me como me vou conseguindo incompatibilizar com toda a gente. mesmo com toda a gente. por isso hoje é domingo, a cidade está deserta, deserta, e eu aqui, aqui, a ouvir o sangue, o ecoar das chinelas, as poucas pessoas pela esplanada, esta cidade do interior assim, como que abandonada. eu aqui, abandonado por mim mesmo.

e mesmo que eu pudesse pensar que vou sacrificando tudo ao que escrevo, é domingo a tarde e eu não escrevo nada de jeito. podia ler mas está calor. podia sorrir mas está calor. podia ir à praia, mas até para isso está demasiado calor. e mesmo que eu pudesse pensar que vou sacrificando tudo ao meu modo de vida, a cidade está deserta e eu, aqui sozinho, não me sinto capaz de afirmar seja o que fôr. a cidade deserta, deserta.

sábado, agosto 06, 2005

feira

perguntaram-me as horas na praça central. era de manhã ainda, mas o calor já nos torrava os cabelos. dia de feira pela rua, as bancas montadas pela vila, vendedores aqui e ali sorridentes, o calor em cima dos dentes que brilham, mesmo que sujos, pessoas da alta a passearem os cãezinhos pela fruta que os da baixa hão-de comer. tudo muito limpinho.

perguntaram-me as horas na praça central. na verdade, inventam-se movimentos populares pelas coisas mais espatafúrdias. defende-se o indefensável, é o que parece. ninguém se preocupa com a falta de ideias. o que não pode é faltar um vaso de anos quarenta num jardim mais monótono da vila. por mim, defenda-se também o cinzentismo nas camisas. tudo muito como antigamente.

perguntaram-me as horas na praça central. o presidente da junta a sorrir pelos botões debaixo de um toldo. a oposição a tirar macaquinhos do sótão com amendoins velhos atirados para o meio da estrada. a fruta assim ao sol esmorece toda. há quem queira chuva e há quem esteja de férias. os sacos, quando cheios, fazem-me tremer os braços. perguntaram-me as horas, sim, foi isso. eu disse que era cedo demais.

sexta-feira, agosto 05, 2005

escolhe a nossa canção

(para .)

sonhei, sonhei esta noite. esta noite ou melhor, todas as noite eu sonho contigo. como é que eu te digo isto sem pensares que enlouqueci?

todas as noites, todas as noites, quase em ritual, deitado na cama. fecho os olhos e surges tu. sim. fecho os olhos e surges tu, distante e solúvel. sentas-te ao meu colo, quando te toco, e dizes, sem qualquer nexo sensual nas tuas palavras, "estava mesmo a precisar de descansar". eu não entendo, eu nem percebo, mas sonho, sonho sim, todas as noites, todas as noites contigo.

sim, sim, sim, todas as noites, como é que eu posso, como é que eu posso dizer-te isto sem pensares que me viciei na recordação de ti?

todas as noites, essa mulher que és tu, que me aparece nos sonhos a mais bela, a mais desejada. sonho que te beijo, em silêncio, e que se ouvem todos os barulhos da cama em fundo, como em fundo de filme. todos os barulhos e gaivotas lá fora. beijo-te o pescoço, a face, encontro a tua boca. os meus braços puxam-te para mim, ainda incertos da tua permissão. envolvo-te a medo, tu sabes. e de repente tu, em explosão, as pernas abertas sobre o meu colo.

todas as noites, todas as noites, todas as noites, todas as noites. eu em excitação por te ter assim, presente e desejante, sobre o meu corpo.

depois revejo os movimentos com que subo a tua camisa, as minhas mãos a oferecerem-se à tua pele, a subirem pelos teus quadris, a aquecerem as tuas costas. as tuas mãos na minha cara, no meu cabelo, as tuas unhas a passarem por mim, eu a sentir-te em arrepio, a tua respiração que se altera. todas as noites, eu abro o fecho do teu soutien, eu sinto o calor dos teus seios, eu chupo os teus mamilos inquieto.

todas as noites, isto, todas as noites, isto, tu, tu, tu, aqui na minha cama, todas as noites o mesmo extâse por ti.

como te dizer isto sem dizer que te amo? como te dizer isto sem que repitas o teu jeito frio, sem que me humilhes? todas as noites tenho-te assim, em silêncio e em sonhos, antes de adormecer no teu abraço, antes de rememorias a tua cabeça no meu peito, a tua forma de sorrir, as tuas desculpas quando achas que me chateias com a tua voz, as tuas histórias, que eu me delicio a ouvir. como te dizer isto sem te dizer tudo o resto?

todas as noites. todas, todas as noites. todas.

modernos e provisórios

afinal, sou só um moderno provisório, um rebelde que se irá anacronizar com o tempo. as minhas palavras só são novidade enquanto não ditas ou escritas uma vez, lidas ou ouvidas logo a seguir. o que tenho de novo para dar é qualquer coisa que se gasta a cada momento. afinal de contas, sou só um moderno provisório.

a next big thing que tenho para te oferecer vai ser um produto de massas daqui a uns segundos. o desvario tecmológico está já em todos os lares. o arrojo ortográfico vende milhões e uma prenda só é surpresa ao rasgar do papel de embrulho. todo e qualquer sorriso genuíno se transforma, ao acontecer, num sorriso forçado que não sabe onde parar.

afinal, sou só um moderno provisório. um rabugento sem orientação. um jovem que via ser velho. ultrapassado. afinal nenhum dos meus problemas trará ao mundo grande coisa em matéria de revelações. nada do que eu possa dizer será, de algum jeito, marcante. um moderno provisório, sim. coloco as mãos atrás das costas e recosto-me descansado.

dedos

recomeça agora a prova dos dedos na boca. o jeito de abrir e fechar os olhos ao ritmo da sedução, o tempo controlado para o gozo e para a satisfação que parece não estar inalcançavel como antes. recomeça agora a prova dos dedos na boca. e começa por ser uma prova de dedos ao natural.

um frasco de compota. um frasco de compota no quarto é uma presença pouco habitual, para mais a esta hora da noite. os dedos finos e ligeiramente arqueados do escritor mergulham-se dentro do frasco e sentem o fresco pegajoso do açucar derretido com frutas. depois, voam.

recomeça agora a prova, a prova dos dedos na boca. na boca dela, a desejosa. que primeiro estende timidamente a língua para fora dos lábios, provando só o doce do frasco, e logo flete os lábios de modo a atingir a pele dos dedos do escritor. assim, ela sente-se poema. poema de açucar.

quinta-feira, agosto 04, 2005

desejo

tirei de dentro do armário o livro velho que me tinhas deixado. era domingo e, logo na primeira página, a indicação de que não deveria ler pela manhã, nem antes de ter completado os vinte e sete anos. respeitei o teu desejo anotado. nem sempre fui assim obediente.

as páginas quase se desfaziam nas minhas mãos. virei-as com cuidado. o livro, de tão velho, parecia ter-se deliciado a comer, primeiro, a tinta da impressão, e, depois, as próprias páginas. o autor era imperceptível, o título não se percebia, por faltarem algumas letras, as essenciais.

era o meu dia de aniversário, o meu dia de aniversário. era o dia de tirar, de dentro do armário, o livro velho que me tinhas deixado. eu cumpri, obedientemente, a minha missão. esperar pelo dia por ti desejado. quanto a ti, não sei, há tanto tempo desaparecida. mas o livro, o livro falhou. não esperou por mim, nem pelo teu desejo.

higiene

com um pano húmido e a bota malcheirosa na mão encaixada, tento remover a bosta da sola. remeto para este trabalho toda a minha dedicação do instante. um pano húmido, de tom azul mas no passado, nunca antes usado neste ofício que prenúncia a morte; a morte do pano que, depois da bosta limpa, para nada nunca mais voltará a ser usado.

a bota malcheirosa encaixada na mão, a bota tantas vezes companheira de aventuras e outros riscos. a bota roubada de entre a farda da tropa, no dia em que me dispensaram com a ironia, nem para a guerra serves. a bota roubada dentro do saco em que só vieram amarguras. um escovinha a perguntar-me por elas e eu, perdi-as, como Judas. são dois contos, disse-me ele, agnóstico.

a bosta pisada por andar distraído, assim, a passear pelo relvado do jardim, nesta cidade sem porto nem comboio. cães que passam a ladrar e eu a ouvir na rádio, o cão tem características psicológicas próximas da do homem, mas o cão nem pisa merda nem limpa botas. com um pano húmido e a bota malcheirosa na mão encaixada, dedico-me, solene, à higiene. não chorarei por ti, pano azul.

buraco

estamos todos fechados em buracos, tenho sombras nos meus braços a deixarem sinais de ausência nas cartas que escrevo para alguém que nunca lê. o termómetro a subir, subir, e eu à procura de uma camisa mais fresca para a manhã de hoje. estamos em buracos e tudo o que podemos fazer é por nós próprios. nada mais.

o que me chateia neste verão é não poder andar com uma arma debaixo da roupa. camisas frescas não combinam com instintos mafiosos e o calor não me permite um casaco de cabedal. estamos fechados em buracos, até os telemóveis já deixaram de funcionar. parece que alguém passa, do outro lado da rua, mas não me ouve nem me vê.

estamos todos fechados em buracos. o corpo marcado pela falta de sol e de humor destas manhãs. exercito a subtileza de conseguir compôr, entre mim e o céu, que é este tecto outrora branco, uma espécie de sinfonia que pudesse trazer alguma harmonia à solidão. mas não, nada. estamos fechados nesta náusea. mais nada.

quarta-feira, agosto 03, 2005

MANIFESTO ASSIM!

estou cansado de comentários carinhosos aquilo que escrevo. de uma vez por todas, convençam-se, isto não sou eu. não sou eu que me queixo aqui, não sou eu que me entristeço aqui, não sou eu que me vício aqui, não sou eu nada aqui. eu sou só o tipo que segura as marionetes, que lhes guia os movimentos, que decide quem, no fim, vive ou morre. sou o tipo que não tem graça nenhuma, ok?

estou cansado, sim, estou cansado. porque quando escrevo não estou à espera de palmadinhas nas costas nem de beijinhos de meninas. nada disso. eu estou fechado na minha sala, em frente ao meu computador, a suar, a suar e a tentar desencantar a palavra certa para encaixar na frase que quero tornar mais complicada a quem me lê, mais complicada e simples, afinal.

estou cansado. a partir de agora espero que tratem mal aquilo que faço, que vejam o erro que ficou pendurado, em vez do pormenor sem importância da depressão. porque a depressão é a personagem. a tristeza é a personagem. a fragilidade é a personagem. eu vou contar umas piadas ao café e depois penso, penso muito nisto, para escrever uma história com três parágrafos. e durmo bem durante a noite.

treme

os meus dedos tremem, tremem por dentro do casaco, este casaco grande que trago vestido mesmo que seja agosto e toda a gente, mesmo toda a gente, já só vista pequenas camisas de aspecto ligeiro e saias muito muito curtas, os meus dedos tremem, tremem, não será nervosismo, perguntava-me ontem um tipo no café, eu quase que mastigava o cigarro, respondi num nã-não gaguejado, os meus dedos tremem e eu nem olho para as pessoas se me falam, nã-não, inseguro, porque lhes havia de dizer, está cá dentro, não é preciso mostrar, por dentro deste casaco grande e abafado, mesmo que na televisão prevejam calor e fogo posto, os meus dedos tremem, tremem, por dentro do casaco.

já me disseram que talvez eu tivesse a mania da perseguição, já me disseram que os médicos podiam ter solução para isto, isto, isto sou eu, os meus dedos que tremem, o meu corpo escondido por dentro do casaco, não, não é nervosismo, é chegarem por perto e dizer, os médicos devem ter solução para isto, isto, isto sou eu, eu, os meus dedos que tremem, os meus olhos que se fecham porque pessoas que me falam porque os meus dedos que tremem, eu, dentro deste casaco grande e quente, a minha impressão de estar a saborear todas as coisas erradas, as coisas que não se deviam levar a boca porque, ah, eu aqui, os dedos a tremer, o casaco, a pensar como se ainda fosse um bebé.

os meus dedos tremem, os meus dedos tremem, os meus tremem, quero segurar a vida nas minhas mãos e não consigo, os meus dedos tremem, tudo a cair do meu mundo para o chão, o chão lá de casa desordenado, sujo, sujo, os meus dedos tremem, os meus dedos tremem, dentro do casaco, o casaco grande e quente, o calor, o fogo posto, os meus dedos tremem, tremem, alguém, um médico podia ter solução para isto, isto, isto sou eu quando passo pelo passeio e não consigo olhar, não consigo, isto, na minha boca todos os sabores errados, como se fosse um bebé, sujo, os meus dedos tremem, tremem, tremem, eu, isto, eu.

eu baixo a cabeça, baixo a cabeça e sinto o pó da alcatifa a subir, por dentro do meu nariz, até aos olhos. agora, vejo embaciado.

era de manhã, era de manhã, parecia, ao ouvir-se o barulho dos homens da construcção lá fora, era de manhã, e não havia mais ninguém dentro da casa para me dizer bom dia. o meu corpo, o meu corpo enlutado e lento, com a pele a revirar-se, tal como os olhos, no ainda escuro do quarto e, de manhã, tenho agora a certeza ou nem tanta, mas o barulho, era de manhã, sim, só podia ser de manhã.

eu baixo a cabeça, baixo ainda mais a cabeça, sinto o pó, sinto, e ao abrir os olhos, ao abrir os meus olhos estéreis, embaciado, está tudo embaciado.

eu chamava, chamava, era de manhã e não havia mais ninguém em casa, a cama vazia, a cozinha vazia, o sofá vazio, eu chamava, chamava, na casa-de-banho a água a lutar contra os canos, abro a torneira e sai vermelha, cor de terra, cor de sujidade, de toda a sujidade que este verão trás à minha cabeça, era de manhã, estou certo, e mais ninguém em casa, mais ninguém para me ouvir, a não ser.

eu baixo a cabeça, a cabeça, a cabeça, e parece que vou cair no momento a seguir, no momento em que olho e o que vejo é nada.

foram-se as fronteiras entre as coisas, minha querida, é isso que eu tenho para dizer quando o sol bate forte nas janelas e é de manhã, era de manhã, agora quase meio do dia, a casa sempre vazia, a cama mais vazia do que a casa, ainda que eu esteja lá, esteja lá eu e todos os meus fantasmas, em alegre comunhão com o vício, a casa vazia, e eu chamava, chamava.

terça-feira, agosto 02, 2005


sorriso no local de trabalho (foto: Manuel Guerra Pereira) Posted by Picasa

message beat

há tipos capazes de ficar contentes só por conseguir andar sempre a direito no deserto. eu acordo e espreguiço-me debaixo dos lençóis. de volta ao aquário penso que ninguém me vê do lado de fora, mas, de tempos a tempos, um dedo grande encosta-se ao vidro e faz tak tak. a água toda estremece, como num maremoto, alguma até parece ameaçar cair para fora.

abro a porta. as moscas invadem todo o espaço, esteja ela aberta ou fechada. alguns tipos parecem sorrir, a colocar um pé sempre atrás do outro, a levantar o chapéu às horas certas, a ajeitar a gravata mesmo quando o calor é insuportável. do outro lado do mundo, lê-se no jornal, há muita gente triste, fechada em casa. tão bem fechada que daqui nem se vê. conheces o teu vizinho do lado?

uma mulher varre a calçada numa dedicação deprimente, a esta hora do dia. da farda municipal, só guardou as calças. veste um top branco que lhe realça os braços magros e os seios desejantes. só na cara se percebe por quantas guerras já andou. ela não sorri, ela não, ao contrário dos tipos que lhe passam ao lado e lhe cheiram as carnes. os pés muito certinhos, sempre, no deserto.

de vez em quando telefonam-me para me lembrar que estou louco. números privados, vozes amigas de tão ouvidas. amigas não, próximas, reconhecíveis. de lá, do deserto, as gravatas a apertar o pescoço, as gravatas sorridentes. de vez em quando lembram-me que eu sou louco. sorridentes, de pés muito bem arrumados, uns atrás dos outros. o meu corpo a boiar, dentro do aquário.

segunda-feira, agosto 01, 2005

Re: [empty]

eu aqui, em reactualização constante, os pés dentro dos sapatos largos. coço as pernas por cima das calças e dói-me a cabeça como me poderiam doer as pontas dos dedos se eu não parasse nunca de coçar os cabelos que se desfazem pelo meu crânio. eu aqui, dentro da camisola de lã, neste verão fresquinho sobre o chão da cidade.

a cidade já só é passível de ser escavada nos subúrbios. no centro da cidade já não se encontra um bom pedaço de terra que se possa escavar. é estranho viver neste mundo onde nada se pode fazer sozinho. ter que esperar pelas máquinas retroscavadoras para fugir para o outro lado do mundo.

eu aqui, reactulizando-me, à espera de voltar dentro de momentos. níveis de preenchimento a ficarem coloridos numa lógica de quanto mais cheio mais perto do fim. tenho essa experiência, sei como se faz. a camisola de lã e o corpo suado, os pés, os pés mandados para a frente. é assim que eu faço.

na cidade, à minha volta, as pessoas andam tão depressa como nos filmes antigos em que se viam imagens do Rossio. Faz-me pensar que talvez nada tenha mudado. tudo continua a ser depressa. tudo menos eu, eu aqui, em reactualização.

eu aqui, cansado de escrever em jeito de notas de rodapé. os olhos chorosos, como toda a gente. ou não, eu não posso dizer "como toda a gente" e ficar aqui, no mesmo lugar. preciso de me levantar, preciso de olhar um espelho e fingir que é possível mudar as coisas de lugar. ou não fingir nada. ou apenas isto, isto, eu aqui. em reactualização.

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