Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)

sábado, janeiro 29, 2005

roupas brancas em dias de vento

eu sei que sim, amor, toca a música baixinho na rádio, estamos os dois tão longe de estar perto, eu sei que sim, amor, a tua mão perdida no meu colo, o meu colo perdido numa outra terra, do outro lado da margem, eu sei que sim, amor, toca a música baixinho na rádio e eu só te vejo nas fotografias, estão os dois tão, meu amor, tão longe de estar perto, eu sei que sim, amor.

e depois tu dizes, apetecia-me deitar a cabeça no ombro de um rapaz, no comboio, eu sei que sim, amor, apetecia-me deitar a cabeça no ombro de uma rapariga, no comboio, eu sei que sim, amor, apetecia-me mesmo que fosse uma pessoa qualquer, uma pessoa qualquer que eu soubesse, que soubesse também, apetecer chorar, sem fugir de mim, sem dizer, a menina está doida, eu sei que sim, amor, apetecer deitar a cabeça, meu amor, e chorar, chorar a vida inteira, eu sei que sim.

vejo-te nas fotografias, tu sabes que sim, meu amor, olho os teus olhos fortes e expressivos, grandes como as ilhas que só sabemos que existem dos sonhos, tu sabes que sim, meu amor, e depois dizes, eu não sou quem tu precisas, tu não és quem eu preciso, meu amor, vejo-te nas fotografias, e eu sei, e tu sabes, apetecer chorar num ombro, deitar a cabeça, chorar a vida inteira, eu sei que, tu sabes que, sim, meu amor, vejo-te nas fotografias, precisar e tudo tão longe, querer só fazer as coisas que não têm como ser feitas.

quarta-feira, janeiro 26, 2005

manhã de hoje

ainda na cama, que horas são?, o corpo partido e mal colado, a cabeça a desvendar-se da sua normal ausência de peso, os lençóis que pesam e que faltam, incomodam mas não aquecem, o corpo ali, deixado quase, as mãos que procuram segurar-se a algum lado, a mesa de cabeceira, como se estivesse em queda para algum fundo, o fundo da cama não, o fundo de mim.

o corpo assim, os pensamentos, porque não se pode pensar naquilo que se vive eternamente, olhar a frase, não se pode pensar eternamente naquilo que se vive, tanto faz, querer dizer as duas coisas, as coisas todas, deixar a eternidade para o fim, não por uma questão de estilo, por saber que a eternidade é uma coisa sem fim, o corpo aqui, doente, e a consciência do dicionário.

onde é que se põem os pontos finais, as vírgulas, os sons que não têm som, marcas deixadas sobre a pele branca do papel, seguro o estilete e os dedos que fraquejam, o corpo ainda, a cama fria e pesada, como podem existir coisas frias e pesadas, perguntam-me, não digo pedra de gelo, porque este frio não queima, digo o corpo, doente, as mãos que procuram segurar-se, o eu não estar aqui, estar sempre aqui, está sempre aqui, penso, eternamente, acabo, eternamente.

domingo, janeiro 23, 2005

uma pessoa

chego a cabeça para trás, no banco do carro, e penso, uma pessoa é muito tempo. já é de noite, agora, acabado de sair de tua casa, estou no carro como quem vai ao psiquiatra, chego-me para trás, à minha frente umas árvores, uns arbustos?, casais de namorados que passeiam o cão e alguém que parece que se quer divertir esta noite. eu chego a cabeça para trás, no banco do carro, as mãos seguras ao volante, uma pessoa, penso, é muito muito tempo.

tinha a mania de dizer que poderia conhecer toda a gente só com uma primeira impressão. tinha a mania de me achar muito certeiro nas intuições. andava sempre de cabeça no ar, a apanhar com o vento forte, tipo marinheiro, altivo e desengonçado. tinha a mania de que gostava de conduzir, tinha a mania de que ia ser grande. tinha a mania de que era novo, tinha a mania de que as coisas certas se encontravam na ponta de um cigarro ou no fundo de um copo de cerveja. tinha a mania de que era muito muito bom. e muitas destas manias, ainda tenho.

uma pessoa é muito tempo, eu já na auto-estrada, a contar dias e horas que passamos juntos sem sequer dar por isso. eu dizia-te coisas doces e tu abraçavas-te muito ao meu pescoço. eu convidava-te para irmos ao cinema e tu adormecias no meu colo. uma pessoa é muito tempo, muito muito tempo, mesmo depois de a conhecermos tão bem. eu na auto-estrada, a música da rádio. eu no banco do carro, a pensar, a pensar que é tão bom estar sossegado, a pensar em não pensar. tudo isto depois de descobrir que uma pessoa, uma pessoa é muito tempo.

quinta-feira, janeiro 20, 2005

hora de almoço

eu a comer devagar a sopa, para saborear todos os legumes, eu a olhar para os meus pés, eu a fazer tudo o que tenho para fazer. que horas são?, perguntaste, e eu a coçar os cabelos que vão caindo para o chão, os pés lá em baixo, a saborear a sopa, todos os legumes, enquanto procuro as palavras para dizer, bem devagar, as palavras para dizer, vem devagar. eu sentado, ainda assim, no mesmo sítio do costume. é onde vamos, não é?

coço os cabelos que caem no chão, são horas de almoço, coço os cabelos, os pés no chão, apetecia-me tanto levantar voo esta tarde, dizes tu, sim tu, eu fico calado, está tanto frio aqui, o trabalho é uma chatice, eu a olhar os pés, a saborear todos os legumes, a contar palavras como se contam segundos, que horas são?, podias perguntar, quantos segundos são?, eu dizia-te o mesmo, é hora de almoço, os legumes, os cabelos.

a olhar para os meus pés, sim, doem-me os pés, tu a dizeres, mais alto um tom, apetecia-me tanto levantar voo esta tarde, eu à procura de palavras, a procurar palavras como se num dicionário um viandante, com uma faca pequenina na mão, a saborerar a sopa, tu a dizeres, voo, tu a dizeres, esta tarde, tu a dizeres, que horas são?, eu a coçar a cabeça, os cabelos junto aos pés, o chão, e se tu perguntasses, eu à procura de palavras, sem responder, as mãos, a sopa, os cabelos, o chão.

quarta-feira, janeiro 19, 2005

cantinhos

agora que escrevo mais, apareço menos aqui no café. já não tenho tanto tempo para as nossas conversas de não ir a lado nenhum. o canto dos pensadores, como nos chamavam. bem, agora que escrevo mais, ando mais por outros lados. tento aproveitar algum tempo para não pensar, para não fumar, para não beber. agora, e vocês sentem a minha falta. desconfio que continuem a falar das mesmas coisas, as mesmas coisas que falávamos sempre. eu continuo a pensar nisso. nas horas fora do café.

depois, quando venho, devem pensar que eu sou uma enciclopédia. obrigam-me a explicar cada verso dos meus poemas, cada expressão das minhas frases. perguntam-me e perguntam-me sem parar. eu respondo como posso, como aguento. mal, a maior parte das vezes. estou sempre a falhar as explicações que penso encontrar. estou sempre ao lado, do lado de lá, o errado. sim, eu sou assim. vocês sentem a minha falta, a falta das hipóteses erradas. já não têm ninguém a quem chamar a atenção.

agora que apareço menos, escrevo mais. agora que escrevo mais, escrevo menos. escrevo menos para vocês, para quem me realmente lê. estou entretido a escrever para mim, não para nenhum leitor idealizado. e se começo a pensar, será que vão gostar?, quando começo a pensar, será que resulta?, sento-me escondido num cantinho de um outro café qualquer ao longe, e não falo com ninguém. fico assim mais seguro, na minha insegurança. acho que me começam a chamar aquele ali do cantinho dos calados.

domingo, janeiro 16, 2005

jogo da solidão

vamos jogar ao jogo da solidão, tu dás as cartas, eu não. não consigo dormir esta noite, esta manhã. obrigo-me à cama quando já se ouve o dia a chegar lá fora. rebolo-me entre os lençóis amarrotados, dias e dias sem tentar endireitar a roupa. oiço o dia lá fora, as minhas mãos em mim, já um pouco incosciente. sono não é, talvez seja o mesmo frio de sempre, não aquele que toca os pés, mas o que nos arrefece por dentro. vamos jogar ao jogo da solidão.

acabo por adormecer mas acordo constantemente. se eu dependesse de químicos, tomaria comprimido atrás de comprimido para dormir. até não acordar nunca, ou talvez já de noite outra vez. como não, as minhas mãos em mim, e voltar a puxar mantas e lençóis para cima da cara, ao corpo a rebolar de um lado ao outro, à procura da calma, da calma, do sossego, à procura de estar quieto, mesmo por dentro. vamos jogar. não precisas sequer de dizer nada.

comecemos o jogo da solidão. o mesmo sair da cama cheio de pressa para não ir a lado nenhum, uma estúpida necessidade de repetir os mesmos gestos, as mesmas coisas em todos os dias marcados. persigo uma rotina que não tenho, que não existe, persigo uma companhia que não tenho, que não existe. e talvez eu faça tudo errado, ou não saiba dizer as coisas, ou não sei, não sei, não sei. comó é que se mostra que só se quer estar lá, por um momento? tu dás as cartas. eu não.

quinta-feira, janeiro 13, 2005

ebulição

estás sempre a falar de coisas que não têm importância nenhuma para ti, escreve o que não és capaz de dizer. tens medo das pessoas, sejam homens ou mulheres, desvias os olhos para cima da mesa, a mesa do café, onde o cinzeiro só tem papéis de rebuçados e a chávena ficou suja com a espuma do café. os pés tremem-te, sim, os pés no bate bate constante, pé de costureira, lembras-te, os pés tremem-te, à força das pernas incapazes de ficar quietas. estás nervoso, constantemente nervoso. em ebulição, preferes dizer.

páras a meio das frases, interrompido por um pensamento absurdo ou por alguém que chegou. páras a meio das frases, pensas que as coisas sem importância não interessam a ninguém. talvez estejas até certo, se tu próprio desvalorizas aquilo de que estás a falar. por isso escreves, escreves o que não és capaz de dizer. tanta gente à volta de uma mesa, sem nenhum olhar que repouse noutro. não há sossego aqui, pensas, pensam. os pés tremem debaixo da mesa, a àgua no copo a denunciar o nervosismo. a ebulição, sim.

recolhes as mãos para dentro dos bolsos, escondidos entre as pernas, encolhes todo esse corpo enorme até te imaginares do tamanho de uma formiga. as mãos em cima da mesa estariam em perigo de toque. tens medo. sim, tens medo e, até por isso, não o dizes a ninguém. falas mal de pessoas que não conheces. só para desviar as atenções. uma mesa de café onde se fala é uma arma contra os gritos que não te largam, dentro da tua cabeça. o mesmo nervosismo de sempre. ebulição, fica melhor.

não me obriguem a escrever

tenho uma caneta guardada dentro do casaco. pareço um mágico. uma caneta, dizem, e lá está ela na minha mão. saiu da manga? tenho uma caneta. o sol está do lado de lá do prédio. não entra pela janela desta sala desarrumada. temos os papéis espalhados sobre uma mesa, uma mesa velha, de trabalho. falamos sempre a olhar para as paredes. quando eu olho para ti, falas tu a olhar para a parede. quando tu olhas para mim, falo eu a olhar para a parede. às vezes também olho para as minhas mãos.

não te oiço, só consigo imaginar o que poderias dizer com esses gestos que fazes com as mãos. não te oiço, não sou capaz de ouvir. olho-te quando falas, como se esperasse que dissesses alguma coisa como, quero estar contigo, olho as tuas mãos como se me pudessem tocar, essas coisas do costume. combinamos ficar calados sobre certos assuntos, aqueles assuntos que nenhum de nós sabe como vai acabar. a vida pode ser assim, não pode? e já não estou a gostar do que estou aqui a dizer.

porque eu tenho uma caneta no bolso, tenho os papéis. mas não me podem obrigar a escrever. estou sentado, a cadeira incomoda-me o hábito de estar sempre sentado nesta cadeira. tu falas, sem eu ouvir. o que é que tu ouves quando eu digo, não vou dizer? não me podes obrigar a escrever porque quando o faço, tu não me lês. e por isso eu fico calado quando te encontro, evitando o medo de me entenderes mal, de ficares sem me responder ali à minha frente. a vida pode ser assim, não pode? e já não estou a gostar.

terça-feira, janeiro 11, 2005

quando o barco atracar no cais

Luzia, se tu soubesses, tenho 46 anos, tenho 46 anos a mais, e vejo que cada dia passa mais depressa, sempre tão depressa, a cada dia que passa e eu a acordar de madrugada para ir para o trabalho, a acordar de madrugada sem uma ponta de sorriso esquecido no canto da boca, sempre a mesma rotina de fazer a barba, tomar banho, o café a correr, o cigarro mal apagado antes de entrar no autocarro, Luzia, dá-me vómitos, dá-me vómitos toda aquela gente, todas as manhã, Luzia, se tu soubesses.

Manuel, como te posso dizer, eu a acordar todas as manhãs e sem sentir que tenho um homem ao meu lado, eu a acordar todas as manhãs e a sentir-me mais velha que a minha mãe e a minha avó juntas, deus as tenha lá no céu, eu a acordar todas as manhãs, e sempre a pensar, como será o dia de hoje, o que me poderá acontecer, todas as manhãs, e a saber sempre, sempre, que não há nada de novo, nunca há nada de novo, Manuel, tenho 41 anos, tenho a idade das actrizes do cinema, mas para mim ninguém olha, por mim, ao que parece, já ninguém se interessa.

Luzia, se tu soubesses, oito horas por dia naquele escritório é uma eternidade, oito horas por dia ali fechado, sem uma cara diferente, sem uma voz lavada, sem uma vista diferente pela janela, oito horas e o rádio sempre na renascença, oito horas por dia e sempre as mesmas notícias, ali fechado, Luzia, se tu soubesses, tenho 46 anos, tenho 46 anos a mais, e oito horas depois de estar ali fechado, o cigarro mal apagado antes de entrar no autocarro, Luzia, dá-me vómitos, dá-me vómitos toda aquela gente, todo aquele suor, Luzia, oito horas fechado no escritório.

Manuel, como te posso dizer, os putos saem contigo de manhã e voltam contigo à noite, é sempre comprar pão e tomar um café, é sempre Fátima Lopes, Sofia Alves, é sempre enganar a fome com qualquer coisa, é sempre passar a ferro, fazer as camas, pensar no jantar, telenovela, telenovelas, pensar no jantar, o que vão eles querer hoje, telenovela, telenovelas, Manuel, tenho 41 anos, tenho a idade das actrizes, eu fico em casa a ver telenovelas, muitos dias nem sei se faz sol ou se chove, telenovela, telenovelas, eu tenho a idade das actrizes.

Luzia, se tu soubesses, chego a casa sempre tão enojado, chego a casa sempre tão doente, e os putos que não se calam, e telenovela na merda da televisão, nem sequer consigo ler o jornal direito, nem sequer consigo pensar limpo, os putos não se calam, a merda da televisão na telenovela, Luzia, se tu soubesses, e eu que nunca te digo nada, chego a casa tão enojado, a merda da televisão, eu nunca te digo nada, Luzia, se tu soubesses, que não há nada para te dizer quando um gajo chega a casa tão enojado, a merda da televisão e os putos que não se calam.

Manuel, como te posso dizer, o jantar na mesa e tudo pronto sempre a horas, já tinha tantas saudades vossas, ver-vos, ver-nos todos juntos, já tinha tantas saudades vossas, e tu calado e os putos aos gritos, o jantar na mesa e eu ali, Manuel, porque não falas, eu queria saber quem viste hoje, porque não falas, eu queria saber o que fizeste hoje, eu queria saber porque não me beijas, eu queria saber porque não te agarras a mim e choras comigo, Manuel, eu tenho 41 anos, eu queria saber porque é que eu tenho a idade das actrizes e tu nem para chorar me olhas, Manuel, como te posso dizer.

Luzia, quando é de noite, tenho medo que o dia volte, tenho medo de voltar a ter tudo outra vez, voltar a repetir tudo outra vez, Luzia, quando é de noite, eu deito-me envergonhado, quando é de noite, espero que tu adormeças e choro devagarinho para não me ouvires, quando é de noite, Luzia, se tu soubesses, eu tenho 46 anos e só oiço a voz do meu pai aos berros, os homens não choram, Luzia, eu tenho 46 anos e espero que tu adormeças para chorar devagarinho.

Manuel, quando estou na cama é ainda pior, pensar na alegria que tivemos quando compramos esta cama, a cama dos nossos sonhos, a cama que foi do nosso amor, e agora, Manuel, a cada noite que passa, Manuel, ficamos cada vez mais longe, Manuel, e eu fecho os olhos com tanta força, com tanta pressa de adormecer para não me lembrar que estou ali, Manuel, como te posso dizer, depois parece-me que te oiço a chorar, Manuel, para que há uma criança na cama deitada, a chorar no teu lugar, e eu fecho os olhos com mais força, e ainda com mais força, para já não estar ali quando conseguir finalmente adormecer.

Luzia, se tu soubesses, trago-te para passear neste fim-de-semana, trago-te a passear para veres o mar, para sentires a brisa quando a janela do carro aberta, trago-te para a rua para ver se limpo a cabeça, para ver se me esqueço, deixo os putos lá em casa para eles gritarem à vontade e trago-te para veres o mar, sabes, é bonito vermos o mar juntos, sabes, eu gosto de vir ver o mar, ver os outros carros com gente nova, sabes, e vê-los aos beijos, agarrados, e vê-los aos beijos, agarrados, sabes, Luzia, e acho que quando te trago a ver o mar, sou um puto outra vez, sabes, eu trago-te a ver o mar, acendo um cigarro, e fico a ver a malta nova nos outros carros aos beijos, sabes, nos outros carros a fazer o que eu queria fazer, sabes, se eu não tivesse 46 anos a mais, e parece que fico com a cabeça lavada, sabes, trago-te a passar neste fim-de-semana.

Manuel, tu sempre calado e o mesmo passeio de domingo à tarde, o mesmo relato de futebol, o mesmo trajecto, o mesmo vento, o mesmo mar, como te posso dizer, eu leio uma revista, e deixo-me ficar, pelo menos é rua, pelo menos é um ar, apesar do mesmo ar de todos os domingos, como te posso dizer, eu tenho 41 anos, a idade das actrizes, e tu trazes-me para junto ao mar para olhares para os outros carros, para olhares para a malta nova aos beijos, e acendes um cigarro, eu sei que isso te dá prazer, Manuel, mas eu tenho 41 anos, como te posso dizer, tenho a idade das actrizes, e apesar do vento, e apesar do ar, e apesar do mar, eu tenho 41 anos, Manuel, e já não te consigo aguentar.

sábado, janeiro 08, 2005

diz-me ficar

posso escrever histórias, mas não posso fazer a história. conto com os meus dedos os dias que passam devagar. lá fora, crianças chutam numa bola meio vazia, gritando golos pela tarde que se estende na corda da roupa. tenho a mesa cheia de canetas, papéis riscados. posso saber como se imita uma palavras, mas não serei capaz de fazer uma. estou comprimido pelo mundo, nesta sala demasiado pequena para voar. mesmo que tivesse asas.

posso chamar-me grande, mas não sei como me fazer crescer. todo o meu tempo é ocupado a escavar-me do chão, a destapar as pernas, os meus pés que desconheço. ir, sim, mas até onde? lá fora, uma menina senta-se diariamente numa mesa da biblioteca, espalha cadernos e livros e máquinas de calcular por uma mesa, estuda fórmulas que lhe garantem algum tipo de ciência. eu olhos as palavras, interrogo-as. mas como posso transmitir o que me dizem elas? mesmo que tivesse voz.

posso dizer posso, mas não posso encontrar o poder da afirmação. penso em igrejas cheias de caras feias, caras más que me apontam os dedos, que falam de mim nas minhas costas, na minha cara, nas minhas lágrimas. penso em manhãs de domingo, no frio que me faz arrepiar a pele, o corpo gordoroso e inquieto, triste, demasiado triste. posso olhar as folhas, será que posso? este aqui na sala sou eu, a pensar por antecipação todos os dias que me faltam aqui ficar. preso?


sexta-feira, janeiro 07, 2005

Raridade

Chovia, chovia muito. Lá fora, do lado de fora da janela. A chuva na janela. Com força. Cada vez mais força. O quintal como terreno abandonado. Terra remexida. Flores já não-flores. Só lama. Lama da terra. Lama da chuva. A escorregar pelo portão. Estrada fora, lama. Um carro ocasional. E os muros cheios de lama.

Fim de um dia de trabalho. Mais um dia. A luz da tarde de Inverno. Fim de tarde. Já noite. Os cabelos molhados. A cara molhada. O fato molhado. Os sapatos cheios de lama. Mais um dia. Para esquecer. Empurra o portão. Com dificuldade. A lama escorrega estrada abaixo. Um carro ocasional. Os muros cheios de lama. Os sapatos deixam marcas pelo quintal. Chovia muito. Daniel procura a chave no bolso encharcado. Abre a porta. Continua a não ter dinheiro para comprar um carro.

Os sapatos ficam logo junto à porta. Há um pequeno tapete enlameado para os pousar. O casaco. As calças. A camisa. Vão ficando penduradas nas várias portas que vai encontrando pela casa. Procura o aquecedor. Liga-o. Nem só de chuva e lama se faz este Inverno. Está muito, muito frio. Passeia-se pela casa em cuecas, a pensar no que fazer. Procura bolachas na cozinha. Vai à casa de banho lavar a cara, secar o cabelo. No quarto veste o pijama e o roupão. Pega no livro que anda há quinze dias para começar a ler. Já leu a contra-capa dezenas de vezes. Ficou fascinado com aquele livro. Tinha que o ler. E lá anda ele há quinze dias. Quarto. Sala. Quarto. Sala. E nem uma página violada.

Finalmente a sala. Uma respiração quente exala do aquecedor. O sofá. Daniel recosta-se no sofá. Pega no comando. Liga a televisão. Nada. Nada de jeito. Não interessa. Odeio. Sem interesse. Menos mal. Música. Baixinho. Só para distrair. Em cima da mesa o objecto do seu desejo. Uma carta. Uma simples carta. Volto a Portugal na próxima semana. A carta chegara há quinze dias. Telefono-te, quero ver-te. Ainda se lembra Daniel. Da primeira vez que viu Adriana. Sentada à mesa do bar da faculdade. No meio de amigos. Esta é a Adriana, Este é o Daniel. Cuidado comigo. Eu sou rara. Foi o que ela disse. E Daniel não teve outra reacção. Senão a de ficar apaixonado por ela. Lá fora ainda chove. Talvez menos. Lama no quintal.

Adriana estava nessa altura já no último ano do curso. Ia estagiar no estrangeiro quando o acabasse. Daniel nunca teve coragem de demonstrar quanto a amava. Saíram algumas vezes. Café. Cinema. Uma noite. Pouco. Ele sabia que ela ia embora. Ele tinha que ficar. Antes só do que longe. Foi o que ele pensou. Ela acabou o curso. Fez o estágio. Ficou por lá. Daniel continuou mais dois anos na faculdade. Nem sequer acabou o último ano. Arranjou emprego. Foi viver para a casa velha da sua avó. Ficou por cá.

Há quinze dias recebeu a carta. Do estrangeiro. Adriana escrevia, de vez em quando. Mandava postais ou fotografias. Daniel respondia. Desta vez a carta trazia uma promessa. Telefono-te. Daniel esqueceu-se de comprar as prendas de Natal. Esqueceu-se até de que era Inverno. Como se lembram, voltou a casa, a chover torrencialmente e nem chapéu-de-chuva trazia. Só valia esperar. Telefono-te. Foi o que ela escreveu. Quero ver-te. Ela queria vê-lo e ele só pensava nisso. Anos depois talvez fosse possível. Talvez ele fosse capaz. Adriana, uma deliciosa raridade, voltava a surgir na sua vida. Quantas oportunidades temos para sermos realmente felizes?

Quinze dias, o telefone calado. A televisão sempre naquela existência fúnebre de quem existe sem existir. O livro inviolado, sossegado, à espera de ser lido. As prendas de Natal por comprar. A mãe já lhe comprou uma prenda e pensa que ele adora o Natal. A louça empilhada suja na cozinha. A cama nunca mais foi feita. O telefone não toca. Mas a chuva parece que vai parar. A lama escorrega. Menos.

A noite toda às voltas no sofá. Todos os programas vistos ou revistos pela noite fora. O sono que não vem à espera do telefone que não toca. Um pacote de bolachas caído no chão, vazio, amachucado. A noite toda a olhar aquele vazio escuro da sala. A Adriana está a chegar. Terminará a espera. Daniel vai dizer-lhe que a ama. Que quer estar sempre junto dela. Afinal ele não sabe quantas oportunidades tem para ser feliz. Vai querer aproveitar esta. A noite toda no sofá. Junto ao telefone escuro. Um raio de luz entra pela sala. Ecoa a chamada pelo vazio. Daniel abre os olhos. Quem é? Foi o que ele disse.

Lá fora o sol brilha, inacreditável num Inverno tão chuvoso como este. Nascem geribérias no quintal.

quinta-feira, janeiro 06, 2005

perder tempo

ainda estamos à espera da tua chegada, eu e eu e eu, diz uma terceira voz que desconheço. soubemos de ti por um aviso, uma carta deixada no tapete da entrada, quando havíamos saído, nós os dois, que do outro nada sei, na ignorância da tua existência. foste tu quem deixou a carta? algum dos teus monstros, talvez.

pode parecer-te estranho que falemos no plural, embora acredite que a tais modos de ser já estejas tu, há muito, habituada. recordo-te em língua estrangeira, num modo imperceptível aos ouvidos para quem falo. sentei-me, sentámo-nos?, junto da janela, olhei a soleira, a rua, estudei o som imaginado dos teus passos no chão molhado. quantos pés têm os monstros?

pensar em passáros, nos seus corpos frágeis, seguros apenas por ossos muito finos, coberto de penas que se arrancam de um simples puxão, quantas vezes pelo vento. pensar em viagens, em dias e dias de lentes partidas, um mundo que, a essa distância, está transformado numa superfície em que as cores estão todas misturadas, comendo-se umas às outras. ainda estamos à espera da tua chegada, eu e eu e a voz desconhecida que agora se calou.

segunda-feira, janeiro 03, 2005

meninas

vou escrever uma história
muito pequenina
assim do tamanho
da minha vizinha

a minha vizinha
não é uma, são duas
uma é pequenina
a outra mais ainda

vou escrever uma coisa
não é história nem nada
é uma torre de palavras
muito mal equilibrada

uma torre e duas meninas
ambas muito pequeninas
se começam a correr
a torre ainda cai

fez um grande catrapum
a torre e as meninas
o que eu acabo de escrever
são letras, ao monte, pelo chão

domingo, janeiro 02, 2005

estrada das azedas

mesmo que desconheça as razões, vou ser sempre o gajo que vive a experiência do sofrimento. em qualquer dia da semana, em qualquer altura do ano. não é uma questão de frio ou de calor, não é uma questão de ter muito ou pouco trabalho. o sofrimento é algo pelo qual eu vou estar sempre a passar. mesmo que desconheça as razões, mesmo que não existam nenhumas razões na aparência das coisas e das pessoas que me rodeiam. sofrer. ponto final.

saio de casa e vou de carro, ver o mar distante. um mar que sopra por cima das pedras e molha as marcações da estrada. oiço música, acima de tudo, oiço-me a mim. eu a falar comigo mesmo, em todos os metros do caminho. vejo quem está à beira da estrada e penso em coisas, pessoas, sítios por onde, passei. não voltarei a dizer que nada fica. lembro-me dos pormenores mais insignificantes de cada momento. um cubo de gelo com coração de manteiga, duas meninas a comer azedas. sim, eu serei aquele que tem sempre dúvidas. não tenho a certeza que seja mau, tenho dúvidas que seja bom.

e por isso, hoje, imaginei frases escritas nas paredes e nos muros das casas. havia tintas de várias cores, pessoas que tinham para dizer coisas diferentes. imaginei frases nas paredes e quase que as via, quando passava, enquanto elas eram escritas nas estranhas correntes da minha alma. vivo assim uma religiosidade diferente, solitária e sonhadora. da próxima vez que me vires talvez eu esteja encostado a uma parede velha, de telefone na mão, pronto a dizer-te que te quero. e talvez tu não vás ouvir.