Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)

sexta-feira, dezembro 02, 2005

try walking in my shoes

castanho não é uma cor, é uma palavra. quando digo castanho, não te digo o cheiro nem o brilho dos teus olhos. digo fronteira, digo distância, falo de lugares onde não podes tocar com as tuas mãos. castanho não é uma cor, não são caracóis macios a desfazerem-se pelos dedos. castanho é uma palavra, uma palavra que tanto pode servir aos teus cabelos como ao tom da terra molhada que se avista pelo campo.

calço umas botas e não ando. com estas botas tornou-se impossível ir a algum lado. calço as botas, visto um casaco bem quente e sento-me de novo na sala. a sala tem as paredes cheias de fotografias antigas e armas que já foram de caça. calço umas botas. quando era pequeno calçava as botas do meu avô e andava pela sala a fingir que era grande. agora que sou grande sento-me, um pouco vergado, dirias, pelo peso desta sala. lá fora, castanho.

talvez alguém me espere, ou espere de mim uma ordem, um avanço. é inverno e o campo para lavrar. o meu avô entrava pela cozinha com as botas cheias de lama e as empregadas corriam a ajudá-lo. havia nelas um misto de reverência pelo senhor e um pânico da sujidade passar para lá da cozinha. dias inteiros a limpar e a lavar a casa toda e umas botas que podiam estragar tudo. levavam-lhe uns sapatos limpos e um pano para limpar a cara. ele mal sorria.

eu ficava num dos quartos de dentro a olhar pela janela. estava frio e chovia, ninguém me deixava brincar à chuva. quando ouvia o meu avô pelo corredor ia espreitá-lo. vinha imponente, completamente sujo de lama e com uns sapatos que quase brilhavam. nunca percebia bem aquela incongruência. sim, eu sabia do processo, de como tudo se passava. mas era sempre com espanto que o olhava, atrás da porta, a passar no corredor.

castanho. não é bem uma cor, agora que penso melhor nisso. castanho é um rasto de lama no chão da cozinha, é o campo todo até onde se poderia ver num dia de chuva. castanho é o meu inverno, todos os invernos. estou sentado na sala, botas calçadas, casaco quente vestido. há qualquer coisa nos teus cabelos que me faz ficar aqui. mas talvez seja a minha vida inteira. castanho é só uma palavra. tento não me esquecer disso.

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