Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)

terça-feira, novembro 08, 2005

L.

consulto o livro dos dias com os dedos a contar graus centígrados pela janela fora. está escuro e, apesar de ser ainda tão cedo, pressinto que chega a noite a esta minha sala. as paredes já não são brancas, já não respiram verão nem qualquer calor. para o fim da tarde adivinho uma chuva intensa e imperdoável. é disso que se trata, a minha língua. a minha maneira de dizer as chuvas e as dores.

consulto o livro dos dias. os meus dedos no papel que tento não desfazer. talvez este inconsequente barulho de passos seja já a chuva que cai lá fora. estou sempre a repetir-me. a minha mão dentro da camisa, enquanto procura o meu peito. a minha maneira de colocar vírgulas em todos os cantos. mas, as horas, os lugares, os dias, inteiros, como eles próprios. será que ainda percebes?

consulto o livro dos dias pela maneira de falar de cada uma das coisas que me rodeia. atendo os teus lábios ao telefone, procuro-te para além das ligãções da rádio. imagino, quieto e vagaroso, o que há do lado de lá da tua voz, onde um abraço, um gesto, uma carícia, ainda podem subsistir. consulto o livro: de que cor os teus cabelos os teus olhos? na minha sala, escura, a noite parece já ter chegado. mal me lembro do meu almoço.

consulto o livro dos dias, insistentemente, o que parecia ser um vagar filosófico rápido se transforma numa obsessão que me manipula os minutos. quem era eu, manhã de férias, esgar tristonho de uma solidão? arrumado nesta cadeira tão maior do que eu, conto, ao bater das unhas sobre o tampo da mesa, os segundos ou as maneiras íntimas de romper comigo mesmo. a cada toque, mais uma ausência.

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