Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)

quarta-feira, novembro 30, 2005

revisão

o meu pé pesado ou esta maneira de dizer algumas palavras em português do outro lado. tentar fazer do meu poema um texto em prosa, um texto em mente, testamento. recorrer, para nunca mais, à rima, encostar o corpo à parede e, por uma última vez, dizer que nada há mais para rever.

o meu olho que chora ou o nariz entupido, inrompido pela caneta que escreve num papel absurdo. quero, mesmo assim, voltar a pôr a cabeça de fora do carro para sentir o vento nos óculos. alguém buzina no meu ouvido e eu sorrio. que horas eram quando tu disseste que tinhas chegado atrasado?

amanhã, andar para cá e para lá, mas a minha deixa era outra, completamente diferente. deixei o telemóvel a carregar sonhos pela noite dentro e fui-me embora vestir camisas de cores diferentes. se encontrares o meu casaco diz-lhe que eu volto. se me encontrares a mim, acompanha-me a casa.

terça-feira, novembro 29, 2005

3

a primeira palavra que me veio à cabeça foi pijama. pijama, como as manias de pequenas festas na imaginação das criancinhas. corria atrás da bola, uma duas vezes três, tentava segurar com as duas mãos pequenas a testa fria da avó e constipava-se ao terceiro dia. era assim que me chegava a palavra pijama.

a segunda palavra não era uma palavra, era uma tela enorme numa sala escura. fomos ao cinema quando tínhamos seis anos, nem sabíamos ler as legendas. havia muita rapaziada à volta, a falar baixinho, a dar beijos nos escuros. nós não sabíamos ler, por isso é que a segunda palavra não era uma palavra. era uma luz acesa.

a terceira palavra era um parágrafo. um parágrafo cheio de palavras diferentes. era uma professora da escola primária a tentar pagar-me um café enquanto me gabava os versos que ainda não tinha lido. era um parágrafo rasurado num caderno, uma ideia para um romance que ainda não escrevi. e ficou-se por ali, parágrafo.

segunda-feira, novembro 28, 2005

Lançamento do livro "Registo de Nascimento" - Fotos


e para ver mais é ir a www.diariodeumlivreiro.blogspot.com(Foto Ozias Filho) Posted by Picasa

domingo, novembro 27, 2005

rasganço

a cama aberta uma vez mais, descoberto o corpo quente da noite, cai uma carga de água e gelo sobre o telhado e eu cá dentro, da casa e de mim, um lenço sobre os olhos chorosos, a mão na testa que quase ferve. a cama aberta, eu, e estar sozinho neste dia assim, um lenço que se molha a cada minuto, depois largado pelo chão.

a cama aberta, a boca desligada, deixei a cabeça algures num dia onde eu não estou. não vale a pena o que possas dizer, não há proximidade que chegue ao meu abraço. puxo então a manta para os meus ombros e oiço no rádio, baixinho, a professora Berardinelli a falar vivaz de literatura. lembro-me de ela me falar de um poema. os olhos vermelhos.

a cama aberta, a boca sem nada para dizer. o frio todo lá fora e todo cá dentro. num espaço intermédio pouco ou nada resta para dizer. páro: a palavra dizer repetida. duas vezes. volto acima, talvez alguma vez mais. sim, ali. três. a cama aberta e eu, as mãos debaixo da manta. oiço. lembro-me de ela me falar de um poema, de como o lia. mas agora, pouco interessa.

espelho meu

tenho o telemóvel cheio de números, cheio de casas e de dúvidas, cheio de palavras sem respostas e sem portas. tenho o telemóvel em cima da mesa, os teus olhos contra os meus, mesmo se chove, um abraço apertado porque alguém está perto, um endereço por apontar. tenho o telemóvel guardado, silenciado, apagado. tenho tudo e mais alguma coisa, em profunda contradição sempre.

há qualquer coisa que me falta dizer. falta-me dizer a mim mesmo. é só isso. tudo o resto não passa de um profundo desperdício.

quinta-feira, novembro 24, 2005

escritor

são onze horas da manhã e o escritor está na varanda, a estender a roupa. o sol bate-lhe directamente na cabeça, o que, misturado com o frio que faz neste início de inverno, provoca um espirro. estende as camisas, calças, cuecas, meias, sem nenhuma organização aparente. o que importa é que ao fim de uns dez minutos, a roupa fica estendida. o escritor volta para dentro e espirra uma última vez.

são onze horas e dez minutos da manhã e o escritor liga o rádio, senta-se ao sofá a ouvir as notícias. tenta pensar em coisas úteis, em palavras, em pequenas histórias e como as construir. no entanto, o escritor pensa no almoço. percorre mentalmente as prateleiras da dispensa, os conteúdos do frigorífico. sentado no sofá, a ouvir música, o escritor estende as pernas e tenta relaxar. e não se decide entre ovos mexidos e uma sandes de fiambre.

são onze horas e já não sei quantos minutos da manhã e o escritor abre e fecha os olhos com violência. tenta pensar no que está ali a fazer mas parece não chegar a nenhuma conclusão. o escritor lembra-se de um tempo em que era um rapazinho organizado, meticuloso. hoje já dá por si a andar pelas ruas que o levam ao seu destino da forma mais longínqua. em que pensava, nos ovos ou num poema? histórias pequenas com sandes de fiambre. o escritor levanta-se.

quarta-feira, novembro 23, 2005

little boys

a roubar outra vez:

"Life is tough and love is rough
For the man who just can't ever seem to get enough
The days go by and the women come and go
So many that you decide to get rid of your front door
So you don't have to hear them all disappear

You just sit and you wait
Staring at your empty plate
And you can say I'm a lonely sailor
Rockin' gently on my dreams
'Cause I have it all, but I don't want it all
It ain't like I've never ever ever ever tried
I just never been fully satisfied "

de Devendra Banhardt


is he talkin' to me?

final da tarde

ah deixa-me ficar por aqui, os olhos chorosos, a ver o campeonato deste lado de fora. eu agarro as mãos uma na outra e finjo-me valente - é uma das maneiras de se viver, digo-te eu, que não sei nada do funcionamento das coisas.

deixa, deixa, leva as bandeiras para a varanda, chama chama por um joão ratão, eu fico no andar debaixo, a ver o jogo decorrer à distância - alimento assim o meu bicho do mato, o meu bicho roedor, cá dentro.

ah deixa-me ficar, sim, deixa-me ficar, pois é sempre essa a minha vontade, a quietude inteira dos dias vazios, as palavras caladas por um silêncio de maratona - a ideia, a simples ideia desta solidão, a escorrer-me pela face, em lágrimas.

Os 5 romances

A minha injusta escolha de hoje:

A noite e o riso, Nuno Bragança

O que diz Molero, Dinis Machado

Caranguejo, Ruben A.

Memória de Elefante, António Lobo Antunes

Um homem: Klaus Klump, Gonçalo M. Tavares

guarda-roupa

não venhas com essa história dos shampoos coloridos para a minha casa-de-banho. inquieto e acalorado, o meu projecto de solidão segue o seu caminho fechado, roda dentada a diminuir o meu sexo contrafeito. algures entre os anos que passaram e os dias que não chegam se perdeu a minha erecção. agora não sonho mais - fico calado a olhar a vizinhança a ir para a cama. moro no sexto andar e tenho o pijama vestido.

não preciso de mais nenhuma razão para te telefonar, digo-te uma ou duas coisas quando calha. tu vives no teu íntimo a imaginar-me um grande cabrão de mau feitio, eu acordo e adormeço do mesmo lado da cama, talvez seja o frio que me esteja a imobilizar, e entretanto levanto-me a custo, tomo banho a custo, como o pequeno-almoço a custo. entre tudo isto, sangue a cair do nariz e a masturbação mal inventada. vivo entre isto e os calmantes.

não quero a tua mão ardente no meu peito, essa é imagem de um filme onde já não entro como actor. a minha erecção perdida, o meu desejo enlaçado dentro de um embrulho, pronto a enviar para longe, sem registo postal. os meus livros a caírem das estantes e o meu olhar sobressaltado a imaginar roubos no meio do silêncio da casa. adormecer e acordar do mesmo lado da cama, a cama que deve ter ficado maior com a chegada do inverno. moro no sexto andar - não me venhas com histórias.

morning glory

lembras-te daquele dia em que

a caneta composta sobre o tampo da mesa
uma casa portuguesa e pão e vinho
os bifes a descongelar sobre o balcão
os dias quietos sem se dizer palavra
lembras-te daquele dia em que
a tostadeira a incendiar pelos teus olhos
o sol que entrava em ângulo complicado pela janela mal fechada
o verso mal cortado, respirando ainda
os comprimidos e os lenços de papel
pois foi aquele dia em que tu
vieste finalmente fechar uma porta cá em casa
com os teus dedos fortes e os teus cabelos despenteados
disses-te duas ou três verdades copiadas de um manual de sobrevivência
e saíste porta fora até à tua ausência

terça-feira, novembro 22, 2005

posso pagar com cartão?

diz-me duas ou três coisinhas ao ouvido.

mas nunca, nunca uses palavras destas aqui, assim deitadas, ao sol e aos beijos como quem não chega nunca a ver o que há para encontrar na vida. nunca nunca uses estas palavras, aqui.

retoma entretanto o vago sabor dos dias e apresenta-te, bem vestido, de barba feita, a quem de direito, no tribunal. depois, arma uma grande confusão, grita e deixa-te cair no chão frio do palácio da justiça, espera, calmamente, que um polícia te venha buscar.

porque não maneira de não repararem que as coisas não fazem nenhum sentido nesta maneira como tu as dizes, não há maneira de se revoltarem e fechar o livro, com a força de uma decisão tomada, má literatura é que não.

fala bem às pessoas que passam e assume para ti o papel de quem chega sempre a horas certas aos encontros marcados. dá, ainda, um piscar de olho às meninas da rua e apresenta-lhes as tuas sinceras vontades de as fazer felizes e contentes por quanto dias elas te possam aguentar.

porque tu és como a gripe - entras em casa, pegas-te a toda a gente e depois só com algum sofrimento é que desapareces. tu és como a vontade não desejada de estar sentado na mesa da sala - sim, na mesa da sala, um cu em cima do tampo, não é um erro, é uma opção.

e não tentes, sobretudo não tentes, contrariar a mania da perseguição que te persegue constantemente. e não queiras, sobretudo não queiras, que apareça alguém a dizer-te bom rapaz, palmadinhas nas costas, aqui vou eu para muito longe, que esta terra não presta para nada.

e no final da história, que, pelos vistos, não tem nenhum fim capaz de merecer três letrinhas destas, voltas ao início, como quem não quer da coisa e dizes, dizes outra vez a mesma treta.

diz-me duas ou três coisinhas ao ouvido.

-----fim de ligação----

telefone fax

o que eu tenho é esta fome de romper os dias abertos pelas chuvas fortes.

disse-te isto como um rasgão, eu sei, quase que gritei quando eu nunca grito e, depois, apareceram algumas lágrimas pela face, uns quantos objectos por tricotar nas paredes, a ruína de toda uma história de amor por começar. o que eu tenho é esta fome, e já tu estavas a sair pela porta.

o que eu tenho é esta urgência de fazer correr todo o vendaval à nossa volta.

podias ser mais meiguinho, pedes tu a um canto, não sei quantos dias depois, podias ser, e eu sorrio, tudo o que eu sou é isso, essa histeria de não poder ficar calado, as minhas mãos tão fortes a lançarem-se pela cara de alguém dentro, podias ser menos dessa fome, eu podia ser menos de tudo e mais de tudo, o que importaria, de qualquer maneira?

o que eu tenho é o que eu não tenho é o que eu tenho é o que eu não tenho.

agora senta-te e lê, uma última vez, o meu livro de poemas e tenta perceber que há qualquer coisa que não funciona cá dentro. agora tenta ouvir aquilo que eu digo por detrás daquilo que eu digo e depois vai. o que eu tenho é esta necessidade de ter, o que te falta é a tua necessidade de seres tida. e nada mais.

sábado, novembro 19, 2005

dos cadernos- página 63

não, não eram todos os dias, uma correria escadas abaixo nos prédios vizinhos, um monte de alminhas em monte sobre o chão da sala a olhar muito fixamente para o écrã da televisão, a consola de jogos a fazer de arranjo floral e dois pequenos satélites agarrados aos comandos, uma gritaria surda dentro da sala, cabelos nas cabeças a dar a dar, chuta, marca, pimba, uma gritaraia naquela sala e a mãe que chega e fecha a porta.

do lado de fora, agora, tudo parece silêncio. fecharam os putos dentro da porta e só se ouve uma pequena brisa de grito, treme um pouco a porta se há um golo, um pontapé, mas tudo parece silêncio. tudo parece silêncio agora, tudo parece não existir. a mãe lava a loiça e lembra-se de há uns anos quando ainda nem o Henrique nem o Tomás, só uma doce espera pelos dias para que o marido chegasse, jantar pronto e mesa posta, tudo num brinco, tudo limpinho, só uma doce espera pelos dias e agora isto.

volta a abrir-se a porta, os rapazes cansados dos jogos, um quer sumo outro a casa-de-banho, a mãe acena com a cabeça durante três segundos, três segundos, o tempo que os rapazes demoram da sala à cozinha, a correr, um escorrega no tapete outro mete as mãos à parede, à parede onde depois quatro dedos ficam marcados por alguns dias, até que a mãe volta a acenar a cabeça com a descoberta, a porta voltou a abrir-se e tudo parece existir em demasia.

dos cadernos - página 117

o retorno de tudo isto haverá de vir, disse-me ele com os olhos bem fechados, a língua sobre a mesa deitada. o retorno de tudo isto, e uma posição remetida aos abraços e encargos da memória, um candeeiro sobre a tela acabada de pintar, uma música acabada no cinzeiro, entre cigarros. o retorno, o retorno. e uma maneira especial de dizer as coisas sem que ninguém o pudesse contradizer.

o espaço, enfim, aberto e o discurso recortado a metro, como os panos na loja da avózinha, três metros de tecido às florzinhas, fazer um conjunto de lençóis para a cama da menina, um pedaço daqueloutro tecido rosado, para as almofadas. o espaço, enfim, e o discurso feito sobre o balcão, contas tiradas a lápis no papel pardo, os sacos para transportar algum enfado, ir ao café do lado a cada dez minutos.

o retorno de tudo isto haverá de vir, a língua sobre a mesa deitada, uma noção de família para a frente, para o futuro, quando o velho ainda era novo e parecia uma criança da calções. talvez seja a minha memória conturbada, perturbada, talvez fosse verão, seguramente seria verão naquele tempo em que tudo eram calções e frases feitas. o retorno, o retorno de tudo isto, uma certa dificuldade em articular as sílabas, uma certa renúncia de existir.

quinta-feira, novembro 17, 2005

técnicas de diversão

fecho os olhos e deixo os dedos escorregar pelo teclado, mesmo com o frio que está eu sou capaz de escrever histórias com princípio meio e fim. fecho os olhos e começo a correr pela rua fora, tentar agarrar tudo o que se mexe em frente aos meus olhos, eu sou assim e tu não, pouco mais há para ter em consideração.

fecho os olhos e abro muito a minha boca, os teus cabelos arrumados pelo pente, pela escova, os dentes cariados e, enfim, qual a parte de mim que tu preferes, nas fotografias? desço as escadas cá de casa degraus três a três, aos saltos como os rapazes quando são pequenos, aos tombos como quando ainda havia alguém para nos dizer, tem juízo.

fecho os olhos e os meus pés enterrados na areia da praia, sim, está de chuva, ainda esta manhã pensei, não se pode ter, na mesma história, tempo de chuva e de sol, sim, ficaria mal no sentido consentido das coisas, entretanto, começamos a escrever um poema sobre as coisas da infância e nada mais ficou daquilo que nos tinha levado a escrever alguma coisa.

quarta-feira, novembro 16, 2005

welcome to your claim to fame

hoje roubo:

"este é o teu cheque do mês, pagas tanto de alojamento.
da natureza, o dinheiro é o quinto elemento.
bem-vindo sejas a cada cêntimo.

este é o teu enxame e o teu formidável cortiço.
bem-vindo sejas ao lugar onde além de ti
vivem quase cinco biliões de castiços.

bem-vindo sejas à lista telefónica onde o teu nome é protagonista.
os dígitos são o desígnio oculto da democracia.
bem-vindo sejas ao teu direito a seres notícia."

roubo um excerto da "canção de boas vindas" de Iosif Brodskii, traduzido por Carlos Leite, editado nos Livros Cotovia.

quem não leu já devia ter lido.

terça-feira, novembro 15, 2005

31

faz-te normal, foi o que me disseram, umdia. faz-te normal, assim, pumba, toma lá. eu devo ter sorrido, sorrio sempre, pra fora, mas por dentro, pordentro, chiça, tremideira. faz-te normal. pumba. foi o que me disseram assim, de caras. maisnada.

o que tinha eu feito? desfeito, talvez. falar mais alto que o próprio pensamento, a minha boca muitoabertamuito. pumba. dizer as coisas que penso, eu funciono assim, em regime de abertura. disse e pronto - dissipronto. faz-te normal.

faço-me como? normal? comé? o meu normal é ser isto, dizer isto, pensar isto. esconder o que há pra esconder? hum? não sei. faz-te normal, pumba. sem maisnemmenos, assim mesmo. e eu... faz-te normal, eu sorri. fora. sorrio sempre. mas pordentro, chiça, tremideira. grande.

segunda-feira, novembro 14, 2005

qual é o teu nome?

eu ou a minha sombra abrasiva - o meu conceito isolado além sonho, matéria de espirros e ausências, delírio matinal repetitivo.
eu ou a minha sombra - abrasiva, porém, só no contacto com a pele, tarde de inverno feita noite, relógio que não avança nunca.

éramos nós os dois mais um par de bandarilhas à procura de um restaurante - sabes tanto da cidade como a cidade de ti: pessoas que te sorriem pelas esquinas, cafés que te oferecem sob o epíteto de Sr. Dr. - logo tu que te enganas em todas as ruas. éramos nós dois ou quantos mais - vais ser capaz de me mentir ao dizer que tens a casa sempre arrumada?

eu e eu e eu e eu - repetir repetir repetir a mesma palavra ao infinito. tenho os pés duridos de andar a correr atrás de ti pela cidade e nem uma palavra te resta para um agradecimento, um obrigado, mesmo que envergonhado. não uses mais pontos finais, foi tudo o que me disseste - ainda por cima chovia, chovia a cântaros, eu todo molhado por dentro e por fora, os ossos a roerem-se uns aos outros - você vai acabar por se desfazer, disse-me o médico.

continuo a correr, mesmo assim. a minha sombra abrasiva ou dez histórias de canções que nunca chegaram a ganhar o festival da canção. uma cantora polaca a tentar abraçar-me à saída da escola e outros tantos músicos a fazerem a festa, como se fosse possível fazer a festa, sendo eu quem sou. tu continuas igual, eu continuo igual, éramos nós os dois e a palavra infinito mal escrita num moleskine. todas as histórias assim.

domingo, novembro 13, 2005

je suis un homme

fiquei com os dedos sujos de terra. em dia de chuva, a terra e a água a escorregar-me pelas palmas, as linhas da vida e do coração acastanhadas, a cabeça que estala. fiquei com os dedos sujos de terra, levantei os joelhos do chão, tentei alisar as calças, o casaco. sou um homem sério, sou?

os meus olhos abertos fechados, a minha boca, os meus lábios secos. chuva, chove. fiquei com os dedos sujos de terra, as calças. saí pelo portão grande e metalizado. parece que ouvia alguém do lado de fora da porta, passos. parece que ouvia alguém a dizer qualquer coisa, palavras. sou um homem sério, sou?

chove. sou eu quem anda para trás e para a frente, a dizer. os dedos sujos pelo casaco, pelas calças. tentei alisá-los, a terra. saí pelo portão, logo depois de ter espreitado. ninguém, ninguém do lado de fora. mas havia passos, palavras. quem? parece que alguém, alguma vez. sou um homem sério, serei?

espelho

não gosto de me ver no espelho da casa de banho esta manhã. vesti uma camisola que veio de ontem, não tomei banho. não gosto de me ver. tenho os olhos semi-cerrados, o sorriso desfeito pelo sono e pelos comprimidos. vou à casa de banho para urinar, lavar os dentes. olho-me ao espelho, não consigo evitar. não gosto.

por cima da camisola, que se torna assim interior, visto uma camisa verde escura. com os botões abertos parece que sou um militar, em tempo de guerra. a barba a crescer, pelo escuro atrás de pelo escuro, uns pequenos raspões sem nada, cicatrizes de pequenas bombas faciais. parece que sou. eu pareço sempre que sou. não sou nada. não gosto.

apago a luz e ando pela casa. há mais espelhos cá em casa, perante os quais eu não consigo fechar os olhos. ando pela casa e vejo-me, no espelho, na parede. o formato da cabeça demasiadamente explícito, o passo quebrado, os olhos que não abrem, vermelhos, cansados. e sou eu, o mesmo eu das fotografias, aqui e ali, confiante. não gosto.

processo

tento fazer algum trabalho autobiográfico - superar sempre o medo de me expôr, refugiado na sensação elitista de que ninguém me pode compreender. tento ir buscar dentro de mim algumas palavras, várias sensações por ser, por criar. e depois mexo-lhes muito com os meus dedos, no meio das minhas mãos. as palavras saem contorcidas, indispostas. ligo a televisão e tento normalizá-las.

podia escrever sempre o que sinto. mas o que sinto não seria entendido como tal, seria antes uma enorme mistura de frases mal começadas e sem fim aparente. à hora marcada apareceram umas quantas pessoas que se esforçaram por arrumar os livros dentro das caixas. uma semana depois, tínhamos menos livros e menos espaço. há certas coisas às quais a física não pode nunca vir a responder. foi o mundo (ou as caixas) que ficou mais pequeno esta semana?

ontem tomei um comprimido e adormeci no sofá, a meio da tarde. tentei curar os problemas respiratórios com licor e cerveja. acabei sentado a uma mesa simpática mas entediantemente machista. apetecia-me tirar as botas e o casaco, mesmo que este frio me seja simpático. sento-me aqui, na mesa onde guardo três lâmpadas fundidas, e penso em vestir a maior quantidade de roupa que me seja possível. e depois ir para a rua, sentir o frio entre a barba. talvez seja isso.

sábado, novembro 12, 2005

constatação

passei a manhã a ler as crónicas que a Adília Lopes escreveu para o Público há uns anos. descobri este material na internet e passei a manhã a lê-lo. a Adília Lopes, não sei se vai à missa, mas vai muito a igrejas. eu acho que ela entra nas igrejas para ver as pessoas a rezar. às vezes encosta-se aos pilares que seguram as abóbodas e diz poemas baixinho. é assim que eu imagino.

a Adília Lopes conhece muitas pessoas que eu conheço, anda por muitos lugares por onde eu ando. eu nunca vi a Adília Lopes, ou então não a reconheci. acho que ela é baixinha e tem passos curtos. eu vejo mal ao longe, sou míope. a Adília chama amigo a pessoas que eu conheço e gosto. anda pela Faculdade de Letras e por Lisboa. a Adília conhece Lisboa muito melhor do que eu. mas eu não moro lá.

a Adília também sabe muito mais do que eu de coisas como: o mundo, os versos, as doenças mentais. ela também sabe muito mais do que sobre outras coisas como: jogos de palavras, amigos, inimigos, pessoas parvas. a Adília entra nas igrejas e é mulher. como é mulher vê as coisas de uma maneira que eu não consigo ver, porque sou míope. às vezes penso que todos os homens são míopes, se comparados a uma mulher.

passei a manhã a ler a Adília Lopes. normalmente não repito tantas vezes o mesmo nome no mesmo texto. normalmente nem escrevo nenhum nome num texto. mas passei a manhã a ler a Adília e estou constipado. uma mistura assim de constipado e de renite alérgica. não sei se a Adília tem renite alérgica. se tivesse, já a teria encontrado nalgum poema. passei a manhã a ler Adília e acabaram-se-me os lenços de papel.

(os referidos textos estão em: http://www.arlindo-correia.com/180902.html )

sexta-feira, novembro 11, 2005

registo de nascimento


Registo de Nascimento é o meu primeiro livro de poesia que será lançado na Livraria Livrododia, em Torres Vedras, no dia 26 de Novembro, pelas 17 horas. O livro tem a chancela da Livrododia Editores. Posted by Picasa

marinheiro

passo a minha mão pela barba e vejo que, ao longe, há qualquer coisa de gélido e disforme que acabará por me tocar. ou isso, ou uma névoa intensa chegada com os dias de novembro à cidade. julgava ser marinheiro e chegar a cada porto com os pés a navegar sobre um chão cheio de beatas. a minha mão pela barba.

passo a minha mão pelos olhos, não sei bem que horas são, deve ser tarde, já. vesti um casaco mais quente, puxei uma manta para as costas e acendi um cigarro. olho, ao longe. o que vejo são as formas de um futuro inadiável, um corpo de mulher que me sorri, envergonhada. passo a minha pelos olhos, quero ver melhor.

passo a minha mão pela barba, o cigarro vai-se queimando aos poucos, mesmo que eu nada faça para incentivar esse lume brando da vida. estico as pernas e olho as minhas botas com sabor a sal. julgava ser marinheiro e era como marinheiro que me vestia, sem saber tudo o quanto pode estar escondido nas imagens fotográficas. o que eu via, não era o que eu via. a mão, a barba.

quinta-feira, novembro 10, 2005

malavita

a lição é simples: chegas, sorris, sentas-te - não precisas de soletrar uma palavra que seja. mais, sempre que te fizerem uma pergunta, a primeira reacção deve ser um sorriso. depois, ponderadamente, escolhe uma resposta que seja simples, limpa e rápida: qualquer coisa entre o sim e o não.

a lição é tão mais simples, quanto simplificado será o modo como te vão abordar - será um homem de fato, elegante, uma pequena barba a estalar pela pele lisa e clara, o cabelo penteado, para trás, com uma voz muito suave e interessada. ser-te-á fácil, estou seguro. e espera que estejas segura também.

a lição, simples: com esse mesmo jeito de convidar os homens ao teu olhar, chegarás, sorrirás, sentar-te-ás. depois deves respirar fundo e deixar que as coisas aconteçam por si. ele será agradável e contemplativo. tu serás acessível e silenciosa. depois da dança dos olhares, poderás fazer um pequeno gesto de disponibilidade. ao gostar, ele saberá o que fazer depois.

quarta-feira, novembro 09, 2005

mais algumas coisas sem sentido

porque eu sou, em concreto, uma arrumação mal pensada dos teus gestos, um copo deixado vazio sobre a mesa, no final do teu jantar - eu sou, inconsequentemente, uma ligeira coceira na orelha, uma recordação que cai do meio de um livro abandonado a meio, uma mão da qual já não se conhece as linhas nem o toque.

porque eu sou, acima de tudo, a falta de jeito ao abordar um abraço, a inquietação pela noite espalhada, o acordar vago e constipado, a palavra sem qualquer ligação ao real - eu sou, abrangentemente, a dúvida que se leva na lapela, os olhos chorosos que querem agarrar o céu, o frigorífico aberto na noite escura.

porque eu sou, ainda e uma vez mais, quem preferiste sempre esquecer perante o medo de te lembrares, a ilusão irrequieta das alucinações que endurecem o teu corpo, a memória que resiste ao que julgas ser a tua vontade - eu sou quem tu nunca poderias esquecer, quem tu nunca largarias na vida, ao menos se.

antes do silêncio

e, às tantas, pela conversa, eu digo:

- conheces alguém que goste de mim?

A8

vens sozinho no carro, lá de lisboa, a estrada está molhada e na rádio repete-se uma música que já ouviste muitas vezes. a viagem, quando estás perdido em pensamentos, passa muito mais depressa. já nem te lembras se passaste ou não pela Venda do Pinheiro. no entanto, se te esforçares um bocadinho, lembras-te daquele sinal em frente à escola, onde acelaraste um pouco para que não caísse o vermelho. o que importa, ainda assim, é isto, vens sozinho no carro.

portanto, vens sozinho no carro, a música toca, antena um, pelos vistos, uma daquelas músicas clássicas que fez com que milhares de pares em todo o mundo se unissem em beijos e paixões. continuas sem olhar sequer para estrada, preferes tentar ler mensagens no telemóvel que, chegando, te fazem sentir um pouco mais feliz, um pouco mais forte. fazem-te sorrir, é isso mesmo. estás a sorrir, mas o que importa, ainda assim, é isto: vens sozinho no carro.

vens sozinho no carro, a estrada esta molhada, chove ainda, choveu o dia todo. páras para comer qualquer coisa, procuras uma revista que não há, tentas entrar em lojas que afinal não existem. páras para comer qualquer coisa, o telefone toca, conversas, sorris, sentas-te. comes, levantas-te, sais. vens no carro sozinho, abres e fechas o porta-luvas à procura de uma cassete, à procura de um mapa das estradas. ainda assim, o que importa, é isto: vens sozinho no carro.

terça-feira, novembro 08, 2005

L.

consulto o livro dos dias com os dedos a contar graus centígrados pela janela fora. está escuro e, apesar de ser ainda tão cedo, pressinto que chega a noite a esta minha sala. as paredes já não são brancas, já não respiram verão nem qualquer calor. para o fim da tarde adivinho uma chuva intensa e imperdoável. é disso que se trata, a minha língua. a minha maneira de dizer as chuvas e as dores.

consulto o livro dos dias. os meus dedos no papel que tento não desfazer. talvez este inconsequente barulho de passos seja já a chuva que cai lá fora. estou sempre a repetir-me. a minha mão dentro da camisa, enquanto procura o meu peito. a minha maneira de colocar vírgulas em todos os cantos. mas, as horas, os lugares, os dias, inteiros, como eles próprios. será que ainda percebes?

consulto o livro dos dias pela maneira de falar de cada uma das coisas que me rodeia. atendo os teus lábios ao telefone, procuro-te para além das ligãções da rádio. imagino, quieto e vagaroso, o que há do lado de lá da tua voz, onde um abraço, um gesto, uma carícia, ainda podem subsistir. consulto o livro: de que cor os teus cabelos os teus olhos? na minha sala, escura, a noite parece já ter chegado. mal me lembro do meu almoço.

consulto o livro dos dias, insistentemente, o que parecia ser um vagar filosófico rápido se transforma numa obsessão que me manipula os minutos. quem era eu, manhã de férias, esgar tristonho de uma solidão? arrumado nesta cadeira tão maior do que eu, conto, ao bater das unhas sobre o tampo da mesa, os segundos ou as maneiras íntimas de romper comigo mesmo. a cada toque, mais uma ausência.

domingo, novembro 06, 2005

where is my mind?

três pedras no meio do caminho, seis olhares descabidos pela janela da varanda: era assim que começava a minha tarde, o meu refúgio. tinha um casaco de cabedal, comprido, tinha a barba por fazer, uns óculos grandes e escuros. tinha o hábito de ficar a conversar à porta, com pessoas que passavam. três pedras no meio do caminho, uma loja onde me encontrei.

entretanto, ligaram a música - fica bem uma banda sonora nestes pequenos contos sem jeito. comprei um livro antigo, sentei-me num banco de pedra, na praça, folheei algumas páginas. queria saber as horas, queria deitar-me à sombra, queria abotoar o casaco. três pedras, no meio do caminho: era assim que começava o poema, a minha tarde.

os meus dedos sobre a mesa, a matraquear um ritmo ouvido de um instrumento que eu nem sequer reconheci. era assim que começava: três pedras, no meio do caminho, os meus pés sou eu, onde não tenho como seguir. o livro, ou a tarde, o meu refúgio. os meus dedos, uma vez mais - quantas vezes o meu corpo espalhado por este texto? uma banda sonora, sem jeito.

sábado, novembro 05, 2005

dedicado, em itálico

eu não tenho trinta anos, ainda.

mas há qualquer coisa que me faz viver como se os tivesse. talvez a falta de cabelo, ou a falta de afecto. talvez um certo carinho por canções românticas dos anos oitenta e uma nostalgia pelos passeios de sábado à tarde a ouvir a rfm. talvez por não ser capaz de me lembrar da minha infância, talvez por a minha infância não ser um campo onde se correu feliz.

eu não tenho trinta anos, ainda.

tenho talvez um pouco mais. e visto uma outra pele com o casaco, faço cara de mau ao balcão do café e conquisto assim um respeito amistoso de pessoas que eu não conheço. volto para casa cedo, às sextas à noite, com medo de ficar, com mais uma imperial, a olhar para as pernas de raparigas dez anos mais novas. fecho-me no quarto, a ler saramago, quando saramago era quem eu queria nunca ler.

eu não tenho trinta anos, ainda.

e mesmo assim há qualquer coisa de familiar nesta maneira de se ser solteiro. olho com incredulidade para uma série de coisas em que acredito e, um pouco mais frente, decido que não acredito assim em tanta coisa que se justifique andar sempre à procura de uma posição para todas as coisas. e depois olho para um jornal e vejo uma frase, uma palavra só, que me faz sentir como se eu próprio a tivesse escrito.

eu não tenho trinta anos, ainda, mas existem algumas palavras que me fazem viver como se os tivesse.

pintura

fico parado em frente à pintura - rios de sangue dentro de mim a manter-me de pé, experimentar puxar de um músculo, desfazer-me de dois ou três ossos, passar a cair sempre incapaz. funciona como uma fantasia, não é, a incapacidade. algures no meu texto ficariam bem algumas reticências. mas, com o tempo, fui eu que acabei por ficar reticente.

fico parado - a pintura- algo que cresce dentro dos meus olhos, só dentro dos meus olhos; passa alguém ao meu lado sem sequer olhar para a parede onde ficou encostada. pressinto qualquer coisa que se mexe dentro do quadro - sem ser a figura humana apanhada a meio da queda, sem ser as nuvens que parecem sombras ao fundo. algo se mexe, e eu acho que é a tua mão, a segurar o pincel.

fico parado em frente à pintura - fazer de conta que não existem palavras capazes de descrever objectos como esta pintura em frente à qual estou parado. fico, sim, mesmo que se esteja sempre a ir a qualquer lugar quando se olha. consulto o manual de filosofia e perco-me nas definições do mundo - se o mundo pudesse ser definido porque estaria eu ainda aqui, a sorrir para a fotografia? com o tempo, a tua mão, que se mexe, reticente.

lista de compras

a minha cabeça cansada ou será que ainda sei escrever? uma língua perfeita por aí, nas mãos dos linguistas e revisores, eu fechado nas mãos dos erros ortográficos, das pressas semânticas, a minha cabeça cansada, os meus dedos que tremem, a minha escrita errada. ou - será que ainda sei escrever? repetir incessantemente duas ou três frases negativas, pôr a música mais alto, andar de pijama pela varanda.

então - falta-me um pouco mais de tempo para fazer aquilo que programo - mais tempo ainda para a desprogramação constante dos objectivos. parte um: a cama. uso dois pontos ou travessão? a minha cabeça cansada quer fumar um cigarro na varanda, enquanto os vizinhos acordam. mas a minha cabeça cansada passa horas em frente ao espelho da casa de banho a cortar-se meticulosamente com a lâmina de barbear.

mas - será que ainda sei escrever? fazer uma pausa para reaver todos os conceitos das palavras perdidas pelos meus lábios. será isso, escrever com os lábios, dizer as letras, alguma coisa. mais além, é sábado de manhã, está fresco o tempo, há poucos carros na rua. algo me faz sentir bem nesta minha pele - e a partir de hoje gostaria de instituir passeios pela rua todos os sábados de manhã. e depois, quando acordar, saber que tudo começa de novo outra vez.

quinta-feira, novembro 03, 2005

oração

olha o que eu tenho no bolso. vês? sim, é para ti. trago-te um presente a cada encontro. falo devagar, muito devagar, para que possas saborear na minha língua cada uma das palavras. vamos ficar a morar por estes lados. esta é a nossa cama, estes são os nossos lençóis. a minha mão sobe lentamente pelo teu flanco, inquieta-te a barriga, sobre o umbigo, procura-te do lado de lado de ti. sonho com esta ilha - onde em todos os lugares és tu.

encosta esses cabelos encaracolados no meu peito, de onde sai o meu perfume depois de abertos os botões que o defendiam. sinto as tuas mãos pela minha face, pelo meu cabelo tão curto. o que nós fazemos é uma dança, uma dança em que, arrebatadoramente, nos chegamos até a um ponto onde somos só um, só um ser em uníssono. e depois ajoelhados, no chão, contamos ao outro pequenas narrativas que vêm do início da história. sorrimos os dois. é boa e simples, esta união.

perco-me por ti em oração. é assim que eu imagino o momento que está para além destas palavras. a casa está às escuras, só alguns cotos de velas iluminam as paredes que de tão brancas parecem sujas. o meu candeeiro és tu, clara pele que me encandeia os sonhos. e o meu corpo é tua morada porque em mim sabes como ancorar. trouxemos, por entre os braços, tinta da china, e pintamos palavras pelos corpos em uníssono. um último gemido e adormeço.

histórias de amor

toda a minha obra uma intensa relação de histórias de amor que acabam mal. sentencio-me assim, fico calado. e depois toda a explosão do amor em cada canto do meu corpo. [pausa]

(certas coisas precisam de um certo tempo depois de serem ditas, como se acentasse/acentuasse o cabimento de cada palavra na desordem dos nossos pensamentos)

fora isso, eu ando bastas vezes despenteado, de caneta no bolso da camisa, escrevinhando em pedaços de guardanapos pelos cafés. sou capaz de chegar a um balcão e pedir, um café e um papel, escrever qualquer coisa sem nexo que acabo por deitar para dentro de um livro e só voltar a encontrar quando é já tarde demais. no entanto, nesta coisa das palavras, nunca é tarde demais.

histórias de amor, queria-lhes fazer um singular onde eu pudesse entrar e sentir-me bem, como em casa. vem para casa, dizes tu, eu sorrio e sento-me no sofá onde procuro esse teu cheiro que ainda não conheço. mesmo que não o possas entender, tu já estavas cá, aqui, antes mesmo de chegares. se o digo, é porque o repito muitas vezes. mas tudo aquilo que eu digo é verdade, na medida em que as coisas podem ser verdadeiras.

(acabo de decidir por isto. tudo pode ser verdadeiro se nada for comparável. eu torno as coisas mais simples quando as penso)

um singular, um singular casal. lutamos contra as distâncias fazendo muita força com os braços. um dia vamos estar numa fotografia sobre a mesa da sala, a sorrir a nossa juventude para a posteridade. é assim que acontecer, nos filmes e nas vidas das pessoas boas. histórias de amor, histórias de amor por todo o lado, naquilo que escrevo. e depois é preciso um certo tempo ( não necessariamente o bom tempo) para se poder escrever aquilo que se sente.

(no final disto fica, certamente, algo por perceber. essa sensação é bem filha do muito que fica por explicar)

cores - um

a minha manhã verde - musgo - carros a deslizar pneus pelo alcatrão molhado, pensos nas faces, cortes da barba, reuniões aprazadas em cima da hora, em cima do joelho. a minha manhã - cores - uma terna influência de uma paleta de infecções oculares, ver tudo mal e tudo bem, esfregar os olhos com as costas das mãos, tirar, pedaço a pedacinho, ramelas do meio das pestanas.

a minha manhã verde - escuro - janela fechada, luz apagada. toca o telefone e eu não atendo, batem à porta, chamam à janela. a minha manhã - chamadas privadas - do escritório, do trabalho que eu entendo, não atendo, não me rendo. o sono todo ainda em mim, os pés a escorregar pela calçada feita rio, ria, feitoria. encontro-me, enquanto acordo, a rimar. e não sei bem o que sonhei a noite passada.

a minha manhã verde - vinho - garrafas cheias de nada sobre a mesa. pensar em calendários, que dia é hoje, seis sete? amanhã, só amanhã, a sexta-feira, a noite inteira, pedir uma cerveja para acender mais um cigarro, mais um charro. tudo isto, não fosse outra coisa, seria uma maneira de passar o tempo, estar com os amigos, diria. mas ainda chove, a minha manhã, as minhas cores instáveis, os meus papéis molhados.