Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)

quinta-feira, março 31, 2005

Neste mundo

Porque nem todos estamos neste mundo para brincar, e tu sabes disso, dás saltinhos no mesmo sítio e sacodes a cabeça enquanto dizes asneiras a torto e a direito. Depois, um pontapé num maço de cigarros amarrotado pelo chão, uma porta fechada com força, um abraço apertado, uma noite a chorar. Porque nem todos somos feitos do mesmo material, mas a ti isso custa-te mais. Porque não adianta ter pressa mas também não adianta esperar. Tu és assim.

Porque nem todos estamos no mundo para brincar, e tu sabes disso, saímos de noite no teu carro e vamos para uma discoteca dançar. Fumamos cigarros e bebemos só o suficiente para ser já de manhã. Depois vai cada um para sua casa dormir descansado, acordas tarde e a más horas, mal disposta com a luz do sol retardada, abraças as tuas gatas, sentas-te no sofá a fumar cigarros até a ramela dos olhos cair de acordada. Almoças à hora que te apetece, é por isso que és uma menina grande. E depois telefonas para dar beijinhos à mamã.

Porque nem todos estamos no mundo para brincar, e tu sabes disso, pões-te a escavar vidas como quem procura tesouros. Para onde olhas vês ouro, tipo alquimista. E depois fazes muita força para que os outros sejam felizes, apareçam pela tua casa, te contem segredos, te peçam coisinhas. Abres a caixa do correio e, no meio de tantas contas parvas para pagar, um postal com um coração. Não é amor, é saber exactamente como te fazer sorrir, mesmo que muitas vezes tu prefiras os teus exacerbados actos de exibição do ego, só para marcar posição. Agora, estás a chorar de emoção.

quarta-feira, março 30, 2005

os malucos

talvez eu só seja louco por perceber pouco das coisas. a noite passada, a minha porta rangia. sim, rangia. parecia ter alguém a empurrá-la com muita força. a noite passada, esta manhã, a porta rangia. custava até fechá-la. tinha uma coisa a crescer-lhe por dentro. uma raiz, uma coisa a fazer barulho. talvez eu não perceba das coisas, e por isso seja louco.

talvez eu tenha vindo o caminho todo até casa a esfregar as mãos, a sentir um foguete que rebenta por dentro, que deita estilhaços por todo o lado, a cabeça a fazer assim, tac tac tac, a cabeça por dentro a fazer assim, tac tac tac, o caminho todo a esfregar as mãos, os braços a quererem voar para algum lado, tac tac, um bebedo conhecido que não me falou, só fez bbbzzzzz, bbbzzzzz.

isso.

faço parte dos malucos da vila, isso de certeza. mas talvez sejamos assim só por saber pouco das coisas. ou talvez por saber a mais. vejo coisas, pessoas, onde elas não estão. na porta, uma raiz. ou só um pedaço do tapete? no corpo, todas as ideias que rebentam. ou só o sangue a correr? no caminho, talvez só eu tenha visto o bebedo amigo e compreendido tão bem o bbbbzzzzz, o bbbbzzzz que ele me sussurrou. isso.

terça-feira, março 29, 2005

aquele jeito de dar aos ombros

estou, com umas calças justas, a ensaiar passos de sapateado em cima da capota de um carro enquanto cai uma chuvada daquelas. é assim que eu me vejo, meio herói meio decadente, a ensaiar uma última dança com beata molhada nos lábios. os cabelos colados na testa, encharcados, o casaco a gritar de velho. é assim que eu me vejo, meio a subir meio a descer, a escada do sucesso. com umas calças justas.

faço dedicatórias a meninas que não me ligam nenhuma e tenho que me levantar cedo para me entregar aos processos burocráticos de ser funcionário. faço dedicatórias nas horas livres, a folga do escritório, as saídas à noite quando ainda resta do salário, faço dedicatórias às meninas que não me ligam nenhuma. e depois danço, diante dos meus olhos, naquele estilo de elvis acabado aos vinte e cinco, naquele estilo de domador de circo abandonado. sou um machista em avançado estado de degradação.

com umas calças justas, o maço de cigarros vazio, o cabelo despenteado e nenhum pente nas redondezas, eu e a minha varanda cheia de roupa por lavar, como a chuva que chega sempre quando o guarda-chuva ficou em casa. vejo-me assim, em cima da capota de um carro, uma capota que vai ficando amolgada pelo meu peso, pela minha evidente falta de jeito. com umas calças justas, ensaio a última dança, um úlitmo olhar sensual. acabado.

segunda-feira, março 28, 2005

e.e.cummings com destinatário

podia ser ao mesmo tempo que um piano começasse a gemer ao fundo de uma sala escurecida pela noite que chega. tinha a camisa de fora das calças, de umas calças confortáveis e largas, nos pés chinelos. podia ser ao mesmo tempo que uma rapariga ainda jovem, de pele clara e olhos sinceros, se repousasse sobre o sofá dessa mesma sala. tinha a pouca roupa que a solenidade do momento exige. podia ser numa casa, no campo. a nossa casa no campo.

podia haver alguns amigos a passear lá fora, de cabeças ao vento, barbas por fazer, amigas com garrafas de vinho tinto a escorrer pelos dedos, a tarde a cair devagar. os pés ao sair dos chinelos e repousantes sobre o chão quente do verão. podia ser ao mesmo tempo que a rapariga acendia um cigarro e um cão com nome de alegria saltasse sobre a mesa da sala onde estavam os jornais. podia ser uma música calma, uma música devagar. com vagar.

podia ser ao mesmo tempo que o mundo nos empurrasse para dentro de uma vida nova, feita nos quadradinhos de um desenhador boémio. livros e livros e livros pela casa, cadernos onde sempre começassemos romances, poemas. podia ser aquilo que me disseste, if strangers meet life begins- not poor not rich (only aware), podia ser once if strangers (who deep our most are selves) touch: forever, podia ser o piano, a pele, a luz, podia ser qualquer coisa, agora, para sempre, ao mesmo tempo.

domingo, março 27, 2005

pequeno tratado sobre o haxixe

o haxixe é um montinho de tabaco de cigarro junto com poeira raspada de uma pedra frágil. mistura-se na mão depois de aquecer.

costuma vir dos bolsos dos amigos ou de conhecidos, em diversos formatos. depois de preparado é embrulhado em papel, junto com um resto de um qualquer cartão de apresentação.

quem perceba do assunto diz se é bom se é mau. a avaliação parece-me depender, em grande escala, do humor do avaliador.

quando sóbrio, o efeito do haxixe é dificilmente perceptível. ou se fuma pouco e dá em nada. ou se fuma muito e fica-se estúpido.

quando alcoolizado, o efeito do haxixe é imprevisível. ou se fuma pouco e a culpa é da bebida. ou se fuma muito e depois não se consegue chegar a casa em linha recta.

o haxixe costuma desaparecer no meio da estrada ou entre as pedras da calçada quando já só sobra nenhum papel e o cartão está amarelo. há sempre alguém que se ri, nesta hora.

quem o fuma regularmente costuma ter com ele uma relação semi-divina, ritualizada, afectiva. não passa sem ele e acha, realmente, que sob o seu efeito está afastado dos pequenos problemas da vida.

quem o faz raramente, quase nunca, escreve tratados.

chop-suey de gambas com vinho branco

sábado à noite e saímos juntos para jantar. dois homens na meia-idade, de cabelos rarefeitos já, com maços de cigarros a encher os bolsos das camisas. sábado à noite, num restaurante chinês, falamos de casamentos falhados e dos olhos bonitos de uma empregada, olhamos com o mesmo espanto um golo transmitido na televisão e as pernas de uma jovem que passa com o namorado. sábado à noite, o mesmo tipo de noite que sempre tivemos. sair para jantar.

quando te liguei e te convidei para jantar, tu pareceste espantado, disseste "só nós dois" e depois com a tua pronúncia brasileira remataste com um "pode ser romântico". desliguei o telefone e fiquei a rir. tinha sido um dia bastante merdoso, sempre de um lado para o outro com o jornal nas mãos, a tinta a passar das páginas para os dedos, uma sucessão de cafés e de encontros falhados. desliguei o telefone e fiquei a rir. toda a gente sai com miúdas giras e eu aqui contigo.

sábado à noite, bebemos mais que uma garrafa de vinho branco cada um e andamos devagar pelas ruas, agora já não tão frias, da mesma cidade de sempre. dois homens de meia-idade que fumam cigarros e vêem mal ao longe. andamos devagar e a passar a mão pela barriga, a tentar adivinhar, entre o breu da noite e a miopia, se alguma rapariga bonita passa do outro lado da estrada. vamos por ali e pensamos que o mundo podia ser ao contrário. e talvez uma rapariga nos convidasse para sair.

sexta-feira, março 25, 2005

o escritor

algures numa secretária, numa morada exacta e passível de ser contactado por meio postal, um escritor encurva-se perante o teclado do computador e esforça-se para mantes os seus leitores ocupados. é isto que eu imagino, esta noite. algures numa secretária, curvado e com dores nas costas, horas e horas sentado em frente ao já tantas vezes maldito teclado, o escritor não dá descanso a nenhum dos seus leitores. não dá descanso, nem descansa.

deve ter um leitor de cd's ligado a passar uma qualquer música calma, é isso que toda a gente pensa dos escritores. que estão curvados e ouvem músicas calmas. eles, para que as pessoas da rua não estranhem, mantém aspectos respeitáveis e vestem casacos e camisas abotoadas até ao pescoço. se aparecem em fotografias de jornais, tentam ter caras sérias e não magoar sentimentos. em casa, frente à secretária, esforçam-se por não dar descanso aos seus leitores. e escrevem, escrevem durante horas, sem descansar.

o cinzeiro está limpo, o escritor não fuma. tem, na cozinha, uma caixa onde guarda as garrafas de cerveja, que também está vazia. o escritor decidiu não beber. cria-se assim uma disciplina invisível dentro da cabeça do escritor, dentro do corpo do escritor. divide-se em leituras de filosofias intricadas e análises de sangue. em frente à secretária, com dores nas costas ou dores nos rins, o escritor esforça-se, escreve e escreve, para guardar dentro de cadernos que hão-de ficar para os seus leitores. sem ter descanso, para não lhes dar descanso. o escritor.

não fumar

podia dizer, estou vivo, podia dizer, cortei o cabelo, podia dizer, apetecem-me todos os cigarros do mundo, sim. é sexta-feira, sexta-feira santa, pessoas paradas em frente da igreja, vestidos pretos, sexta-feira, as senhoras velhas a comprarem peixe no mercado de manhã, uma chuva dos diabos, senhoras velhas a encaminharem-se, aos pares, para a frente da igreja. podia dizer, estou vivo, podia, sim.

podia dizer, cortei o cabelo, podia dizer, uma manhã feia, podia dizer, caras bonitas não aquecem corações, sim. sexta-feira, igual a todas as outras sextas-feiras do mundo, o jornal amarrotado debaixo do braço, os cafés habituais todos fechados, e nenhum barman é católico, sequer religioso, andar pelas ruas vazias e pensar que já só se respeita o negócio, pois. senhoras velhas a pedir meias de leite e a comer pastéis de nata nas montras das pastelarias. o mundo todo fechado, o cabelo cortado.


podia dizer, apetecem-me todos os cigarros do mundo, podia dizer, tenho dedos e não tenho anéis, podia dizer, um livro é um livro mas eu hoje estou de folga, sim. sexta-feira, havia de ter ido à missa, sim, noutra vida qualquer, os sapatos sujos com o pó da rua, ou a lama de uma páscoa muito cedo no calendário. senhoras velhas a pedirem ajuda para atravessar a estrada, carros que andam só dentro das ruas dos donos, senhores mal habituados aos prazeres do passeio. os cigarros, sim. mas eu não fumo.

quarta-feira, março 23, 2005

olá

disse-me olá mas o que me tocou foram os cabelos, os cabelos empurrados pelo vento contra as faces brancas, os cabelos a desalinharem-se sobre a passadeira, entre as faixas brancas de tinta e azuis de alcatrão, disse-me olá, era de noite, disse-me olá, por não poder virar a cara, por eu estar mesmo ali, por ter toda a vontade que eu de dizer olá, assim.

disse-me olá mas o que me tocou foi a voz pequena e limpa, sobre os passos de salto alto no caminho, o vento contra a voz e contra mim, o vento por nós dois, disse olá, sim, olhou-me, os cabelos a tapar os olhos, os olhos tapados pela timidez e disse, sim, disse porque era de noite e só de noite se diz olá assim, a um desconhecido que passa na rua.

disse-me olá mas o que me tocou foi o perfume, o perfume colocado sobre a roupa e sobre a pele, em frente ao espelho no quarto ainda de menina, disse olá, sim, o perfume a envolver-me todos os sentidos, com o vento, disse, porque era de noite e agora ela sai à noite, porque as férias da escola, porque os amigos todos, disse olá, sim, porque eu ali, onde sempre devia estar, a meio do caminho, na passadeira, assim, de onde não se desvia o olhar.

terça-feira, março 22, 2005

copos de cristal

deixei os copos em cima da mesa, em cima da mesa da cozinha. no frigorífico, lá está, a garrafa de champanhe. tu ainda não sabes e provavelmente vais estranhar, os dois copos ali, os dois copos de cristal, em cima da mesa da cozinha. tu ainda não sabes e quando chegares, quando chegares do trabalho, vais de certeza estranhar. deixei os copos em cima da mesa e imagino-te a acenar a cabeça de um lado para o outro, em jeito de reprovação.

em cima da mesa da cozinha, os copos onde não deviam estar. tu a chegares do trabalho, a chegares cansada do trabalho, a pousar o saco do pão sobre a mesa, ao lado dos copos, a tua mala sobre a mesa, ao lado do saco do pão. tu ainda não sabes e dentro do frigorífico, lá está, uma garrafa de champanhe. os dois copos de cristal, que olhas com reprovação, não os irás arrumar. os copos em cima da mesa, tu a saíres da cozinha e imagino-te a pensar que eu que os arrume, eu e as minhas ideias parvas.

deixei os copos em cima da mesa, em cima da mesa da cozinha. no frigorífico, lá está, a garrafa de champanhe. tu ainda não sabes e vais estranhar, os dois copos ali, os dois copos de cristal, límpidos, por usar. tu ainda não sabes mas, ao mesmo tempo, tu já sabes. eu é que fiquei todo este tempo sem saber. fiquei este tempo todo sem saber que tu e o Nuno, tu e o Nuno, eu sem saber. eu e tu e o Nuno, cá em casa, eu e tu e o Nuno, tantas vezes, e eu sem saber. deixei os copos em cima da mesa, os copos de cristal. talvez chegue o Nuno, talvez façam um brinde. quando já não me restar nada para imaginar.

segunda-feira, março 21, 2005

em Sintra, à chuva

devia começar por vos avisar que os meus poemas, pelo menos na forma como eu os vejo, não servem para ser lidos. avisados do que vos espera, então, avanço. ninguém me convidou para fazer este discurso, portanto, imagino-o e guardo-o para mim. nas primeiras palavras, avalio a acústica da sala. devia ter vindo cá mais vezes, antes, para poder ensaiar aquilo que vai sair. a minha intuição funciona assim. aos bocadinhos.

o meu segundo aviso é o seguinte: não vos vou ler os meus poemas. o que eu tenho, que se leia, são um amontoado de palavras, agrupados em versos ou em linhas de processadores de texto. o que eu tenho, são impressões vagas das coisas que as pessoas dizem todos os dias. o que eu tenho, é a cabeça molhada e a respiração alterada por ter vindo à chuva até ao cimo deste monte. testo a acústica da sala. olho os meus papéis. está tudo bem, assim.

terminam-se os avisos, pelo que me parece. acho graça que se possa estar aqui, numa sala de poesia, numa sala com tantos poetas, e ninguém falar da chuva que cai agora lá fora, ninguém falar dos caminhos que se fizeram para aqui chegar, das pessoas na bilheteira da quinta, a avisar-nos dos mapas. acho graça que se possa estar aqui e nenhum poeta arriscar uma saída do papel escrito. eu não fui convidado, por isso imagino. e tenho pena que a porta esteja fechada para a chuva sobre a erva.

sábado, março 19, 2005

não lhe encontrei um título

ponho-me-te a inventar nomes, talvez eu queira ver melhor, talvez fazer-te ver melhor, um monte de coisas que continuam sem sentido. ponho-me-te a inventar nomes, palavras que não querem dizer nada, erros. nomes, aglomerados de letras e palavras virgens, painéis martelados por mãos sujas de pedreiros. ponho-me.

os nossos meus teus olhos choram do vento poeirento que vem do jardim. uma menina de saias rosa dá saltinhos pela calçada. chego aqui e penso, prosa tipicamente portuguesa. calçada, mais ninguém de nenhum país fala em calçada. e depois ponho-me a pensar e lembro-me daquela fotografia do jean-paul e da simone, na praia de copacabana. a preto e branco, até podia ser espinho, num dia de sol.


nomes, sim, nomes. e depois olho para as minhas palavras e percebo, isto é tudo igual, tudo igual, mesmo que me telefones a meio da noite e eu atenda o telefone na rua, a ver pessoas que saem da escola e que entram em carros a correr, são só nomes, só nomes. ponho-me-te a inventá-los, porque talvez eu ainda queira dizer alguma coisa. a meio da manhã, o pó nos olhos, desejar que tudo seja possível.

sexta-feira, março 18, 2005

se a nossa vida dava um filme, porque não fazê-lo já?

preferia plagiar autores conhecidos, sim, autores que escrevem frases bonitas e complicadas que eu traria para os meus textos como se trazem flores arrancadas dos jardins municipais para casa. preferia escrever como escrevem os artistas e os poetas, escrever de uma forma elevada e de difícil acesso às massas. mas não. eu não escrevo nada de jeito, já devias ter reconhecido isso, acabo só por escrever da mesma maneira que as pessoas falam, da mesma maneira que as pessoas dizem, vou comprar pão. só escrevo coisas normais e, por isso, trago para os meus textos as frases normais que me dizes a uma mesa de café.

é então como se eu estivesse a ensaiar uma teoria do romance, ou nem tanto, uma teoria do escrever histórias pequenas que não ocupam mais que uma página, uma maneira fácil e previsível de sem sair do mundo se o largarmos mesmo da mão. ensaio encontrar uma maneira de fazer as coisas que eu faço todos os dias e que nem sempre me levantam tantas dúvidas como as que agora tenho. às vezes, é mesmo só chegar e sentar, a história já está toda lá, debaixo da superfície branca do papel. às vezes, é andar com uma frase um dia inteiro na cabeça, uma semana inteira, e ter que encontrar a melhor maneira da encaixar numa história. às vezes, tudo isto me parece um imenso falhanço. e noutras vezes é só escrever aquilo que eu ouvi numa mesa de café.

então, se a nossa vida dava um filme, porque não fazê-lo já? não vale a pena ficar à espera de uma mau realizador, de actores preguiçosos e nada parecidos connosco. sim, eu sou um gajo estranho e vai ser difícil alguém imitar a minha cara de sacana quando digo coisas só da pele para fora. sim, tu não és parecida com ninguém e não vamos querer ter uma actriz que pensa que é boa a fazer da complexidade que é ser-se como cada um de nós é. façamos o filme, pois, porque o argumento é fraco e não vai haver subsídios para os cenários. então eu sento-me e começo a escrever as coisas normais que acontecem na minha cabeça e tu ficas aí desse lado a abanar a cabeça, a gostar imenso daquilo que vai aparecendo no écrã, e depois mandas-me um email onde me insultas. a coisa acabará por ficar resolvida numa mesa de café.

um dia, a Golgona queixou-se por ver uma frase dela no meio dos meus textos.Hoje, decido citá-la. Email recebido com o assunto "P.S." e resposta.

Ainda não li, mas vou dar atenção.

Para a revista estou agora a fazer uma escolha dos poemas do Arnaldo Antunes, cantor/artista plástico/poeta brasileiro que me permitiu fazer a primeira publicação de poemas dele em Portugal. [é o gajo que também faz parte dos tribalistas, será que sou só eu que o conheço pelo nome?]. Também já tenho um texto do Xavier Queipo, galego, e sonetos, meu deus! Sonetos!, de uma jovem lisboeta que encontrei num blog.

Por estes dias espero as colaborações prometidas do Jorge Reis-Sá, Paulinho Assunção, Luá Garcia da Costa e Onésimo Teotónio de Almeida. Da minha parte, preparei um bonito editorial, com arroz a acompanhar, e talvez poemas, talvez uma pequena introdução à poesia do Arnaldo Antunes, talvez uma reacção inflamatória ao que a Lua me enviar (casos de ardor via internáutica com todos os lados do oceano.)

Falta o designer, sim, mas também me falta tanta coisa. Faltam-me patrocínios, mas o dinheiro também não é tudo. Falta-me fazer com que o António Alias me entregue o texto dele, mas ontem mandei-lhe uma mensagem e o gajo não disse nada. Falta-me encontrar a minha identidade sexual (convenceu-me ontem disso a minha psicóloga) e falta-me conseguir conversar com os espíritos que me protegem. Falta-me tratar dos papéis do carro e falta-me tratar de um monte de merdas burocráticas relacionadas com a livraria, seja no capítulo obras e pedreiros, seja no capítulo papeladas nas finanças.

Se tudo correr como imprevisto, no domingo já não estarei ranhoso e irei passar o final da tarde na quinta da regaleira, em Sintra, num recital de poesia. Apetecia-me tomar comprimidos e dormir, mas tenho o peixe cozido para o almoço e a farda de empresário tem que estar pronta para uma reunião de trabalho às 14h. no meio disto tudo leio Sartre, e sabe-me muito muito bem.

Um beijo,

Luís.

P.S.: curiosamente, o nome do email que me enviaste. Isto soou-me tão bem que o vou publicar no esferovite. Que se lixe. Ninguém me reconhece na rua, anyway.

-----Mensagem original-----De: golgona anghel [] Enviada: sexta-feira, 18 de Março de 2005 4:28Para: Lums CristsvcoAssunto: P.S.

é verdade, "dieta para ser poeta" fica para o próximo número... ou não. ainda não consegui acabar o texto e está-me a ficar, parece-me, demasiadamente grande para a revista. ah, não te assustes com os textos que te enviei, eu não tenho a tua elegância de valsa, escrevo com o martelo e...engajgo-me com palavras e ...nada, logo vês...
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quarta-feira, março 16, 2005

portas

eles estão nas portas, sim, eles. eles elas. elas estão nas portas, debaixo, atrás, dentro das portas. eles e elas. estão lá. estão nas portas, a vigiar-me, a tomar conta de mim. eles estão nas portas e eu vejo-os. sim, vejo. eles estão nas portas e eu falo-lhes. sim, falo. pode não ouvir-se, mas falo.

eles estão nas portas, estão nas portas, a tomar conta de mim. sentados, em pé, eles estão. nas portas da minha casa, da rua, das lojas, de todo o lado. nas portas. estão lá, sinto-os, vejo-os. de noite, entram no meu quarto e vigiam o meu sono. tomam conta de mim. eles, elas. sinto, vejo.

eles estão nas portas, estão nas portas, sempre comigo. não sei se me vigiam só a mim, se também a mais pessoas. não sei se são os meus espíritos, se os espíritos de todos nós. eles estão lá, sim, estão lá onde eu os vejo, onde eu os sintos. eles, elas. nas portas, em todas as portas.

domingo, março 13, 2005

gramática das línguas latinas

por tua causa repenso os usos habituais da gramática das línguas latinas. fazes-me pensar nisso. quando estamos deitados na cama, a fumar um cigarro depois do sexo, penso nos usos correntes e não correntes das palavras em determinadas ordens. penso nas palavras que se escolhem para definir certas coisas. por tua causa, eu a fumar um cigarro, na cama, e a pensar nisso. por tua causa.

por tua causa encontro-me, a certas horas do dia, a dizer querido meu quando talvez devesse dizer meu querido. isto nas coisas da língua é muito pouco acertado pensar que se deve isto ou aquilo. talvez seja como nas relações. não há um modo correcto de fazer as coisas, faz-se e espera-se que tudo corra pelo melhor, que as pessoas nos compreendam. por tua causa, a certas horas do dia, eu a dizer as coisas da maneira que a maior parte das pessoas não entende. a certas horas.

por tua causa, despido na casa de banho, a passear a lâmina de barbear pelos braços. faço caminhos para a tua língua por entre os meus pelos. eu, despido, na casa de banho, a meio da manhã, a fazer caminhos, caminhos de pele, por entre os pelos. tu a falares no teu modo peculiar de dizer, que eu sei que vem de outras vidas, de outras manhãs, e eu a fazer caminhos, caminhos, até que me tocas e eu gemo. prazer, sim. por tua causa. sim.

sábado, março 12, 2005

ambiente

a sala está cheia de papéis e de livros. em cima das mesas, das cadeiras, dos sofás, papelada, livros. a sala está cheia. um aroma de incenso que se queima devagar, a um canto. música, muito baixinho. há um ambiente, pode-se dizer. há um ambiente nesta sala escurecida pelas nuvens de março. alguém sentado, olha, quieto, as coisas em redor. há um ambiente, terceira vez. sábado à tarde.

telefonaram. telefonaram e perguntaram-lhe por coisas. há um ambiente. a vida está cheia de coisas, ele pensa. sim, é um ele. a vida está cheia de coisas que se ligam, umas às outras, por correntes muito frágeis que duram para sempre. podemos mudar de lugar, as coisas permanecem ligadas, talvez só numa ordem diferente. há um ambiente, segunda vez. sábado ou outro dia qualquer.

podemos sempre voltar a tudo, a tudo o que dizemos ou que escrevemos. podemos passar o tempo todo a voltar aos lugares onde passamos. dizemos voltar e, no entanto, não é bem isso. porque o que acontece é fazer uma coisa nova. a cada momento, sempre coisas novas. por isso, a sala cheia de papéis. o incenso a queimar. ele, que olha sentado. há um ambiente, primeira vez. um dia qualquer.

sexta-feira, março 11, 2005

jardim

falemos de flores, como se falassemos de casas ou de escolas ou de mulheres, falemos de flores. porque as flores crescem com em minúsculas sobre as páginas dos livros, trazendo o colorido e os abraços. falemos de flores, dos amores, das dores, de todas as rimas previsíveis de todos os poetas, falemos. e depois abrimos as páginas dos livros e ficamos a olhar, flores.

falemos de flores, como se falassemos de burocracias, manias, olhares, falemos de flores. porque nos nossos olhos que vêm tão mal, começa agora um filme que se vê tão bem, e são flores, são prédios, cabelos soltos, caras bonitas, são flores. falemos, sim, deixemos que as palavras se transformem nas nossas bocas e começemos já a falar às cores.o mínimo de poesia e o máximo de eficácia.

falemos de flores, como se falassemos de manhãs, de noites, de roupa estendida nas varandas, falemos de flores. porque as flores vêm nas bocas dos pássaros, que esvoaçam sobre as nossas cabeças, e esses pássaros são outros de nós, com asas, com olhos, com sonhos, com flores. falemos então de flores, de flores, letras grandes e palavras cheias, abraços coloridos e amigáveis, flores, flores, flores.

quinta-feira, março 10, 2005

22:45

a partir das vinte e duas horas e quarenta e cinco minutos vamos todos começar a falar francês, anunciava um carro com altifalantes esta tarde, pelas ruas de Lisboa. era um carro com um aspecto envelhecido, com dois tipos de barba rala dentro, de janelas abertas e a fumar cigarros baratos. repetiam a mesma frase a cada cem metros percorridos. com o trânsito habitual da cidade, as pessoas eram obrigadas a ouvir a mensagem mais vezes do que poderiam desejar. assim mesmo.

a partir das vinte e duas horas e quarenta e cinco minutos, o que, pelo meu relógio, está prestes a acontecer. não consegui perceber bem se o que eles anunciavam era um passe de mágica, do tipo, agora falo português, agora falo francês, ou se tentavam dar uma ordem. de qualquer maneira, o efeito será o mesmo. presumindo que a esta hora estarão os dois em casa, a ultimar os preparativos, e que, consciente ou inconscientemente, começarão a falar francês à hora marcada, o objectivo deles será concretizado. para quaisquer dificuldades a entrar no esquema, recorrerão a canais franceses da tv cabo ou a um disco velho do serge gainsbourg.

a partir das vinte e duas horas e quarenta e cinco minutos, está mesmo quase, faltam sete minutos, toda a gente a falar francês. pelo menos, toda a gente que aqueles dois do carro velho conhecem. pelo menos, eles os dois, numa das casas a cair do bairro alto, onde as salas estão sujas de cinza e têm uma bola de futebol a esvaziar a um canto. toda a gente. mais perto da meia-noite, tocará à campaínha uma amiga deles, uma menina de Lisboa, a convidá-los para irem a uma tasca beber uns copos. e eles vão perceber como é difícil pedir imperiais em francês.

terça-feira, março 08, 2005

a pairar

a pairar, sim, a pairar. o céu está azul e frio, nuvens, não aqui. a pairar. pés que levantam do chão e começam, como dizer, a voar. um corpo inteiro que deixa de pensar como corpo e começa a sentir leve, ausente. a pairar. como grande parte das coisas desejam começar.

a pairar, sim, a pairar. os braços que já não estão no seu lugar. os olhos tão abertos de fechados, as coisas todas que podes ver, a coisas todas que podes provar. a pairar. pessoas por todos os lados para onde queiras olhar, algumas lá em baixo, outras contigo a voar.

a pairar, sim, a pairar. consegues abrir-te ao mundo e depois avançar. não tens nada o que decidir, apenas, deixar andar. é aí onde tu estás, a pairar. a tua alma sorri, agora que a podes escutar. ao subirmos para o alto já não há ruído a incomodar. sim, meu amigo, sim, a pairar.

segunda-feira, março 07, 2005

carta a mim

deixa-me que te diga que hoje há sol. ouve-me em silêncio, com teus olhos fechados. assim regresso ao fim de dias, dias fora de mim. deixa-me que te diga que voltei. ouve-me, é a única coisa que te peço. sei que estás, sempre estiveste, aqui. sei porque o sinto, porque são indesmentíveis todos os sinais. assim regresso, para perto. e digo-te.

temos que saber sair para poder entrar. temos que saber cair para nos podermos levantar. temos que ter dias maus para sabermos o que são os dias bons. eu hoje regresso, como um acordar, e levanto-me da cama para o caminho de chegar até ti. eu hoje regresso, mesmo que traga um sabor amargo da boca. eu hoje regresso. porque o caminho dos sentidos é deixar-se levar. o caminho dos sentidos é sentir tudo, tudo o que esteja perto para sentir. e depois, o regresso.

deixa-me que te diga que hoje há sol. ouve-me, sim, eu estou aqui de novo. pelas janelas, pelos meus olhos, por todos os meus poros, um sol que chega para nos avisar. é bom o regresso. respiro a plenos pulmões, para que a entrega seja concretizada. deixa-me que te diga, ouve-me. falo para ti, a ti me dirijo, apesar de saber que tu estás sempre aqui, sempre. e que tudo o que eu passo, és tu, e que tudo o que eu sinto, és tu, e que tudo o que é tudo és tu e és tu. eu, aqui.

quinta-feira, março 03, 2005

o primeiro dia

hoje seria o primeiro dia, o primeiro dia a sério daquilo que nos falta para viver, se pudessem haver primeiros dias, se fosse possível, agora que já somos crescidos e temos os lavados do sono, começar tudo do início. hoje seria o primeiro dia, o primeiro dia para me levar a sério, se fosse possível, se não fosse claro para ti e para mim, que a vida é uma coisa longuíssima, que vem de outras e vai para outras, sem parar.

seria hoje, enfim, para sermos correctos, neste vigésimo quinto dia do mês de fevereiro, nesta décima oitava lua cheia de uma vida juntos, nesta sexta-feira à noite tão cheia das loucuras de sempre, tu sobre mim, no sofá da sala, eu a dizer, o primeiro, o primeiro dia, e finalmente tu que me percebes por completo, a dizer sim, a dizer sim, o primeiro, o primeiro dia do que falta para vir, mas foi sempre assim, a vida, as vidas inteiras.

o primeiro dia, porque depois, depois seguiríamos mais altos, mais fortes, mais corajosos, a correr nas pistas olímpicas para uma meta imaginária. o primeiro dia, porque depois, depois flores de lótus a cair do céu, o amor presente em todas as caras, a compaixão em todas as casas, enfim, o seria o primeiro dia de tudo aquilo que nos falta viver, se fosse possível um primeiro, se não estivessemos já cá desde sempre, e não fossemos um bocadinho de tudo aquilo que já vivemos, em todos os primeiros dias que tivemos.

quarta-feira, março 02, 2005

horário de voo

passa meia hora da uma da manhã desta noite fria fria em que andar na rua é deixar um vento de gelo entrar para dentro dos casacos e camisolas e congelar a alma. eu estou em casa, sentado na cadeira de sempre, cada vez com menos roupa. desafio o frio e desafio-me a mim. sim, estou aqui. aqui a mandar letras, enroladas em papelinhos, para todos os lados do mundo. voar sem asas.

passa meia hora da uma da manhã e uma vitalidade de manhã cedo, na noite fria fria, eu aqui, a mandar letras para aí, para lá, eu aqui, a cadeira de sempre, o costume. olhos bem abertos, bem abertos, pensar em coisas de atrás, não se pode dizer nada a ninguém, foi o que eu pensei quando, tu a andar à minha frente, eu a dizer olá a conhecidos e tu, a menina do café não veio hoje. não se pode falar. voo.

passa meia hora da uma da manhã, frio frio e eu só em camisa. daqui a pouco vou-me deitar e dormir e pronto. é assim todas as noites, é assim que são as noites, penso para mim. tenho planos dentro do cérebro, será que eles andam pelos fiozinhos mais escuros da massa cinzenta? frio frio, não tenho, mas sou capaz de acordar constipado, eu aqui, na cadeira de sempre, o costume, a mandar letras para todo o lado do mundo, saber, não se pode dizer nada a ninguém, sim, e eu, aqui. voar.