Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)

sexta-feira, janeiro 07, 2005

Raridade

Chovia, chovia muito. Lá fora, do lado de fora da janela. A chuva na janela. Com força. Cada vez mais força. O quintal como terreno abandonado. Terra remexida. Flores já não-flores. Só lama. Lama da terra. Lama da chuva. A escorregar pelo portão. Estrada fora, lama. Um carro ocasional. E os muros cheios de lama.

Fim de um dia de trabalho. Mais um dia. A luz da tarde de Inverno. Fim de tarde. Já noite. Os cabelos molhados. A cara molhada. O fato molhado. Os sapatos cheios de lama. Mais um dia. Para esquecer. Empurra o portão. Com dificuldade. A lama escorrega estrada abaixo. Um carro ocasional. Os muros cheios de lama. Os sapatos deixam marcas pelo quintal. Chovia muito. Daniel procura a chave no bolso encharcado. Abre a porta. Continua a não ter dinheiro para comprar um carro.

Os sapatos ficam logo junto à porta. Há um pequeno tapete enlameado para os pousar. O casaco. As calças. A camisa. Vão ficando penduradas nas várias portas que vai encontrando pela casa. Procura o aquecedor. Liga-o. Nem só de chuva e lama se faz este Inverno. Está muito, muito frio. Passeia-se pela casa em cuecas, a pensar no que fazer. Procura bolachas na cozinha. Vai à casa de banho lavar a cara, secar o cabelo. No quarto veste o pijama e o roupão. Pega no livro que anda há quinze dias para começar a ler. Já leu a contra-capa dezenas de vezes. Ficou fascinado com aquele livro. Tinha que o ler. E lá anda ele há quinze dias. Quarto. Sala. Quarto. Sala. E nem uma página violada.

Finalmente a sala. Uma respiração quente exala do aquecedor. O sofá. Daniel recosta-se no sofá. Pega no comando. Liga a televisão. Nada. Nada de jeito. Não interessa. Odeio. Sem interesse. Menos mal. Música. Baixinho. Só para distrair. Em cima da mesa o objecto do seu desejo. Uma carta. Uma simples carta. Volto a Portugal na próxima semana. A carta chegara há quinze dias. Telefono-te, quero ver-te. Ainda se lembra Daniel. Da primeira vez que viu Adriana. Sentada à mesa do bar da faculdade. No meio de amigos. Esta é a Adriana, Este é o Daniel. Cuidado comigo. Eu sou rara. Foi o que ela disse. E Daniel não teve outra reacção. Senão a de ficar apaixonado por ela. Lá fora ainda chove. Talvez menos. Lama no quintal.

Adriana estava nessa altura já no último ano do curso. Ia estagiar no estrangeiro quando o acabasse. Daniel nunca teve coragem de demonstrar quanto a amava. Saíram algumas vezes. Café. Cinema. Uma noite. Pouco. Ele sabia que ela ia embora. Ele tinha que ficar. Antes só do que longe. Foi o que ele pensou. Ela acabou o curso. Fez o estágio. Ficou por lá. Daniel continuou mais dois anos na faculdade. Nem sequer acabou o último ano. Arranjou emprego. Foi viver para a casa velha da sua avó. Ficou por cá.

Há quinze dias recebeu a carta. Do estrangeiro. Adriana escrevia, de vez em quando. Mandava postais ou fotografias. Daniel respondia. Desta vez a carta trazia uma promessa. Telefono-te. Daniel esqueceu-se de comprar as prendas de Natal. Esqueceu-se até de que era Inverno. Como se lembram, voltou a casa, a chover torrencialmente e nem chapéu-de-chuva trazia. Só valia esperar. Telefono-te. Foi o que ela escreveu. Quero ver-te. Ela queria vê-lo e ele só pensava nisso. Anos depois talvez fosse possível. Talvez ele fosse capaz. Adriana, uma deliciosa raridade, voltava a surgir na sua vida. Quantas oportunidades temos para sermos realmente felizes?

Quinze dias, o telefone calado. A televisão sempre naquela existência fúnebre de quem existe sem existir. O livro inviolado, sossegado, à espera de ser lido. As prendas de Natal por comprar. A mãe já lhe comprou uma prenda e pensa que ele adora o Natal. A louça empilhada suja na cozinha. A cama nunca mais foi feita. O telefone não toca. Mas a chuva parece que vai parar. A lama escorrega. Menos.

A noite toda às voltas no sofá. Todos os programas vistos ou revistos pela noite fora. O sono que não vem à espera do telefone que não toca. Um pacote de bolachas caído no chão, vazio, amachucado. A noite toda a olhar aquele vazio escuro da sala. A Adriana está a chegar. Terminará a espera. Daniel vai dizer-lhe que a ama. Que quer estar sempre junto dela. Afinal ele não sabe quantas oportunidades tem para ser feliz. Vai querer aproveitar esta. A noite toda no sofá. Junto ao telefone escuro. Um raio de luz entra pela sala. Ecoa a chamada pelo vazio. Daniel abre os olhos. Quem é? Foi o que ele disse.

Lá fora o sol brilha, inacreditável num Inverno tão chuvoso como este. Nascem geribérias no quintal.

Sem comentários: