Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)

sábado, novembro 27, 2004

assim; as minhas mãos

a roupa aparece e desaparece do estendal da varanda ao lado. sim, é sábado, e há vizinhos pelo prédio inteiro, fechados nas suas casas, embrulhados em mantas que aquecem as mãos cansadas de uma semana a trabalhar. os barulhos do prédio são mais intensos. almoços sopram vapores pelos fumeiros, crianças choram em frente aos televisores. é sábado, e visitas tocam às campainhas, com sacos de prendas e rebuçados para os pequenos. uma bola desce todo o prédio aos saltos, lentos, pelas escadas.

acabado o almoço, é hora de sacudir as toalhas, enchendo-se o pátio de migalhas que nenhum pombo alguma vez terá o gosto de provar. carros chegam e partem com as compras, com mudanças, com a pressa de um outro dia qualquer. penso em cesariny, "quando aqueles que chegavam olhavam os que partiam, os que partiam choravam, os que ficavam sorriam". penso em como a poesia pode dramatizar todo um dia vazio, transformando-o num dia cheio. parece que vai chover, mesmo assim.

alguém canta acompanhando a música da rádio. gostava de conhecer um sinónimo de sing-a-long em português. afinal, vivemos cheios de problemas de linguagem. alguém discute numa varanda mais abaixo, alguém ralha com uma porta a bater forte, algures no prédio. é sábado. e os acordes de guitarras que poderiam soar pelas ruas foram de fim-de-semana para terras distantes. eu diria que a chuva ainda nos vai fazer sorrir, se conseguirmos abrir os olhos para o céu no instante do primeiro trovão. ou então sou só eu a ler, a ler muito mais do que devia.

acabamos todos por sair de nossas casas para nos encontrarmos uns aos outros à porta do elevador. é assim que funciona, este silêncio de bom dia, este sorriso sincero. bebemos café para aquecer os dedos, ninguém me consegue convencer do contrário. e há sempre um sabor forte e reconfortante em sermos assim, pessoas de sábado, que vêm a roupa aparecer e desaparecer na varanda do vizinho, que sentem que há todo um mundo lá fora, mas um mundo muito maior cá dentro. ou sou eu a exagerar, ou foi a poesia que nos fez tudo isto.

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