Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)

terça-feira, setembro 14, 2004

o pai dela

eu sou todo ouvidos, disse-me quando puxou a cadeira para se sentar à minha frente. sou todo ouvidos - eu a ver as orelhas a crescerem sem parar, a ficarem do tamanho de pessoas, duas orelhas como se a pessoa crescesse para ser outras pessoas ainda. sentou-se e cravou os olhos na minha cara. segunda reacção : vermelho pela cara, um calor insuportável pelo corpo inteiro. penso para dentro: caraças, assim não vai dar.

são onze da manhã, estou enfiado no escritório do Dr. Curvelo, advogado conceitado aqui da terrinha. isso, por si só, não seria grande inconveniente. não, também não tenho problemas com a justiça. o Dr.Curvelo, para além de tudo aquilo que ele é, também é o pai da Luisinha. sim, a Luisinha minha namorada. sim, essa mesmo. portanto, estou no escritório dele e sou todo ouvidos, diz ele. já perceberam, pûs o pé na poça.

o que se passa é que a Luisinha chegou ontem à noite a casa, a chorar. normal, ela chora muito. mas o pai dela é um pai galinha. normal, muitos pais de meninas com dezoito anos são pais galinhas. o que não é normal é, quando o pai lhe perguntou o que se passava, ela ter dito, e ponho entre aspas porque foi mesmo isto que ela disse, o que não nada normal, "o cabrão do Tozé", repito, "o cabrão do Tozé", vocês imaginam a Luisinha a dizer isto? "o cabrão do Tozé" e porta do quarto trancada.

Tozé, preciso de falar consigo. foi isto que me disse o pai dela quando, hoje de manhã, me acordou pelo telemóvel. sim, porque a Luisinha tomou um comprimido para dormir e esta manhã até parece uma anjinha. sou todo ouvidos, olhos cravados, etc etc. gaguejo mais que todos os gagos do mundo. não se tinha passado nada. apenas a Luisinha com mais uma daquelas crises do entra no curso não entra no curso e eu que lhe disse, mas Luísa, tu já entraste, e ela nem me ouviu, gritou que eu quero sempre apressar tudo (confesso, outros assuntos) e foi a correr para casa.

é claro que eu não consegui explicar nada disto ao pai dela. eu só ga ga ga gue gue gue java e ele pôs-se com o seu discurso de cuidado que ela é muito sensível, você comporte-se como um homenzinho, que isto não volte a acontecer. saio do escritório a pensar que agora nem sequer posso acabar com ela (também não é isso que eu quero), que o homem parte-me em duas metades. ligo-lhe para o telemóvel, ela acorda sem se lembrar de grande coisa (o comprimido). digo, bom dia, meu amor.

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