Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)

terça-feira, setembro 28, 2004

desempregados

os desempregados telefonam-se uns aos outros para dizerem que continuam na mesma. dormem até tarde e esperam, em mesas de café, pelo telefonema milagroso que lhes vai oferecer férias na caparica e jantares em restaurantes com sport tv aos domingos à noite. lêem e relêem os jornais para ver anúncios de empregos previamente atribuídos. é isso que os desempregados fazem. contas à vida.

a maior parte das vezes andam com livros debaixo dos braços e caminham a pé, durante imenso tempo, pelas ruas das cidades. não parecem ter destino nenhum, e é isso que faz com que os restantes transeuntes os olhem de lado. normalmente infiltram-se em funerais ou outras festas familiares, só sendo notados pelo facto de usarem calções. são assim os desempregrados. despenteados e com a barba por fazer.

quando alguém lhes pergunta como vão as coisas, dizem sempre que está quase. têm sorrisos amarelos, mas isso não é uma questão de higiene. sussurram a alguns próximos que o livro deve estar quase aí, que existem editores interessados e muitas trocas de e-mails para todo o lado. enquanto isso, perdem-se na biblioteca a ler romances de fraca qualidade. são assim os desempregados. escrevem poemas antes de dormir.

segunda-feira, setembro 27, 2004

castigo federativo

olha o tempo, grita um velho desdentado da bancada quando caio ao chão, dois segundos depois de ter levado mais um monumental encontrão do criminoso que veste a camisa quatro do adversário. hoje estou farto de levar porrada. cada vez que a bola vem, seja por terra ou pelo ar, vem pau também, do lado contrário. e agora, com o jogo a chegar ao fim, com as pernas cheias de negras, ainda tenho que ouvir um velho bêbedo da bancada, olha o tempo. penso comigo, o tempo o caralho.
não me aguento e levanto-me, coxo, em direcção ao ajuntamento que se tinha criado junto à linha lateral. agora já corres, palhaço, grita o velho e já eu estou do lado de lá a espetar dois pitons no peito do fala barato. ataque à cantona em jogo regional, foi o título do jornal de notícias. o resultado foi uma ida à esquadra para identificação depois de ter sido salvo pela polícia de uma dúzia de alcoólicos de domingo em fúria.desta deve escapar-se, não se meta noutra, disse-me o agente de serviço. depois disto, bola só para o ano.
impulsivo sempre fui, como diz a minha mãe. agora andar a bater em velhotes, é passar das marcas. diz que tenho de me dedicar aos estudos, à namorada, a outra coisa qualquer. eu não lhe digo nada. agarro nos livros e vou com eles debaixo do braço para o café em frente à escola. bebo umas imperiais e olho para as miúdas. isto da pancada não foi nada, penso comigo. o que me chateia mesmo, é que me andem sempre a chamar a atenção. isso é que eu não suporto.

sexta-feira, setembro 24, 2004

depois do amor, só mesmo o amor

do lado de dentro do amor, uma rixa entre nós dois assombra-nos o acordar todas as manhãs. serás tu, serás tu? algo muito pior do que os pesadelos, algo muito mais pesado do que todas as contas para pagar sempre que tocam à campaínha e dizem, correio. do lado de dentro do amor, aquele lado onde nunca ninguém nos perguntou, juntos para sempre, onde há tempestado seja inverno, seja verão.
dói-me a cabeça quando são três da manhã e me apercebo que tens o rádio ligado e os óculos caídos para o lado de lá da cama. dói-me a cabeça e, já agora, o corpo todo, de estar assim a fazer medições inconscientes para não te tocar nesse teu sono de cristal. todo o mal-estar é uma forma de se estar. sim, mas a mim custa-me este pijama mais quente quando ainda há calor lá fora, só para não sentir a tua pele a suar contra a minha e o nojo que isso me dá se acordo às três da manhã, os óculos caídos.
porque a ti ainda te resta a ideia de que a poesia são só palavras, mas a mim falta-me tudo. se me ouvisses, ias voltar a dizer, exagerada, minha querida, és uma exagerada, recorrendo àquela voz de colégio inglês que passaste a usar para mim muitos anos depois de nos termos encontrado num jardim fresco de coimbra. eu sei que engordei e que nunca te dei os filhos que tinhas sonhado. mas também sei que nunca deixaste de encontrar os teus poemas noutras mulheres que passaram por ti. ambos sabemos disso. e ainda assim.
ainda assim, falo-te hoje do lado de dentro do amor. aquele que não grita na cozinha nem bate com a porta quando foge para ir tomar cervejas no café do bairro à hora do futebol. o lado que não faz renda na marquise quando há reuniões aos sábados de tarde. o lado que se deita contigo e que acorda às três da manhã. falo-te, estou partida por dentro. podes dizer, demoraste tanto tempo a chegar aqui, minha querida, mas eu sei o que me custou ter ficado também tanto tempo de dedo esticado a pedir-te boleia. ao menos hoje, diz-me boa noite.

quarta-feira, setembro 22, 2004

André Valente

o andré, pode não parecer, mas está sozinho no mundo. aqueles que ele considera amigos, aquele que ele faz próximos, estão constantemente a ir embora. a mãe, estando presente, não lhe dá a confiança que uma criança daquele tamanho, daquela idade, oito anos, precisa. andré, pode não parecer, mas está sozinho no mundo. o mundo dele, o lumiar. e ninguém ama tão intensamente quanto ele.

o primeiro a partir foi o pai. não lhe disse nada, apenas deixou a sua ausência lá por casa. depois disso, foia sua amiga da escola. aquela que o defendia dos outros garotos, os que o gozavam, os que lhe batiam. andré parece um adulto quando pensa (e muito do que o vemos é o seu pensamento), mas é uma criança muito frágil no mundo lá dele. a amiga vai embora e ele fica exposto. por fim parte Nicolai, um vizinho, adulto, que acabou por o maravilhar numa pista de gelo. todos partiram. o andré precisa de amigos.

andré não sabe dizer pensamentos. ele pensa e pronto. ele percebe primeiro que o namorado que mãe lhe trás para casa só lhe vai fazer mal a ela. ele percebe primeiro que o Nicolai não tem jantar em casa. ele sabe que, no mundo dos grandes, se não dermos a mão a alguém ficamos sozinhos. ele sabe que as pessoas vão embora. ele sabe dizer asneiras. o andré é um valente. mas não deixem o andré sozinho.

(andré valente é o primeiro filme de Catarina Ruivo. Em exibição nos cinemas)

segunda-feira, setembro 20, 2004

palácios de cristal em forma de coração sorridente

lar doce lar é onde nós guardamos as armas depois de fazer um longo caminho. ligo o leitor de cd’s quase no máximo e oiço um rock bem duro e abano a cabeça com violência enquanto pareço ver a guitarra a subir pela parede. “mathematically turning the page”. parece que a cada avanço na vida deparo-me com cruzamentos que levam a futuros que não são o meu. paro, respiro fundo e sigo. é assim que funciona comigo. com vocês não?

dou por mim a ter visões de bancos de pedra à sombra, sítios onde passar momentos doces dos meus dias. era isso que eu queria sempre, coisas doces e doces e doces, como um colo que nos dão sem nos exigir nada, como um colo que nos chama a dar colo e abraços e doces e doces e doces. dou por mim a sorrir e a chorar quando me lembro do meu cabelo a ser revoltado por uns dedos mais carinhosos que o mundo. dou por mim assim, de volta aos meus treze românticos anos. paro à beira do passeio e dou-te um beijo.

não se pisam uvas que já deram vinho, recebi eu uma vez um postal que veio do frio. sim, eu sei. mas o que descubro agora é que se faz a vindima todos os anos. e é sempre mais uva e vinho que vem e que vai. somos capazes de nascer de dentro de nós próprios, diz-me a doutora, eu olho-a e sorrio, sim, e se nos derem a mão e ela for quente como um coração que bate ainda é melhor. dizem-me, és mesmo homem, e eu sorrio, mais por dentro do que por fora. são estas pequenas coisas que me fazem pensar que eu sou bonito.

quarta-feira, setembro 15, 2004

olhos de velhinho

escondido atrás do armário, eu oiço os gritos bem lá ao longe, onde eu não consigo ver nada do que acontece. escondido atrás das portas, eu não me apercebo sequer do que está em discussão. foram só pés a pisar com força no soalho e gritos a estalarem ouvidos pela casa. eu, o de fora, escondo-me, não participante. figurante do filme errado, na cena errada. enfim.

nestes dias em que lá fora o sol brilha por entre nuvens que lembram o inverno, fico com olhos de velhinho, chorosos e frágeis. quando ando pela estrada custa-me perceber as indicações das ruas e dos bairros. finjo que domino os sítios e se me engano culpo o condutor da frente. o sacana não fez pisca, não deu para voltar. eu sou assim. nem sempre estou nas cenas erradas. só naquele dia.

escondido atrás do armário penso nas minhas coisas, na minha cabeça a dar horas, na bomba-relógio que podia ser a minha vida se, se ou se. é assim que eu faço as coisas, devagar e calado, em silêncio, a medir os passos pequeninos. e quando me gritam treme-me o mundo por baixo e fico de olhos de velhinho, como o sol de hoje, a espreitar por entre as nuvens do inverno.

terça-feira, setembro 14, 2004

o pai dela

eu sou todo ouvidos, disse-me quando puxou a cadeira para se sentar à minha frente. sou todo ouvidos - eu a ver as orelhas a crescerem sem parar, a ficarem do tamanho de pessoas, duas orelhas como se a pessoa crescesse para ser outras pessoas ainda. sentou-se e cravou os olhos na minha cara. segunda reacção : vermelho pela cara, um calor insuportável pelo corpo inteiro. penso para dentro: caraças, assim não vai dar.

são onze da manhã, estou enfiado no escritório do Dr. Curvelo, advogado conceitado aqui da terrinha. isso, por si só, não seria grande inconveniente. não, também não tenho problemas com a justiça. o Dr.Curvelo, para além de tudo aquilo que ele é, também é o pai da Luisinha. sim, a Luisinha minha namorada. sim, essa mesmo. portanto, estou no escritório dele e sou todo ouvidos, diz ele. já perceberam, pûs o pé na poça.

o que se passa é que a Luisinha chegou ontem à noite a casa, a chorar. normal, ela chora muito. mas o pai dela é um pai galinha. normal, muitos pais de meninas com dezoito anos são pais galinhas. o que não é normal é, quando o pai lhe perguntou o que se passava, ela ter dito, e ponho entre aspas porque foi mesmo isto que ela disse, o que não nada normal, "o cabrão do Tozé", repito, "o cabrão do Tozé", vocês imaginam a Luisinha a dizer isto? "o cabrão do Tozé" e porta do quarto trancada.

Tozé, preciso de falar consigo. foi isto que me disse o pai dela quando, hoje de manhã, me acordou pelo telemóvel. sim, porque a Luisinha tomou um comprimido para dormir e esta manhã até parece uma anjinha. sou todo ouvidos, olhos cravados, etc etc. gaguejo mais que todos os gagos do mundo. não se tinha passado nada. apenas a Luisinha com mais uma daquelas crises do entra no curso não entra no curso e eu que lhe disse, mas Luísa, tu já entraste, e ela nem me ouviu, gritou que eu quero sempre apressar tudo (confesso, outros assuntos) e foi a correr para casa.

é claro que eu não consegui explicar nada disto ao pai dela. eu só ga ga ga gue gue gue java e ele pôs-se com o seu discurso de cuidado que ela é muito sensível, você comporte-se como um homenzinho, que isto não volte a acontecer. saio do escritório a pensar que agora nem sequer posso acabar com ela (também não é isso que eu quero), que o homem parte-me em duas metades. ligo-lhe para o telemóvel, ela acorda sem se lembrar de grande coisa (o comprimido). digo, bom dia, meu amor.

segunda-feira, setembro 13, 2004

i'm just a man whose intentions are good

de onde vem esse silêncio onde te calas, pensa ela agora que a noite cai, de onde vem esse teu não atender nem entender nada do que te digo ou penso. abre a janela que dá para a rua estreita e acende um cigarro tirado de um maço que a mãe deixou sobre a mesa da sala. são onze e meia da noite e eu não sei de ti, pensa. estarás talvez agarrado a uma cerveja. talvez estejas a olhar para as pernas de alguma míuda muito nova que páre pelo café. deita o fumo fora como quem deita memórias tristes para longe.

um dia, dois dias, três dias inteiros sem uma mensagem. ela envia mas nada recebe. ele ausentou-se. ausentou-se como é costume fazer, sempre que não lhe fazem as pequenas vontades. tantas vezes coisas insignificantes como torcer o nariz a um filme que ele diz adorar. outras vezes dizer bem da simpatia do rapaz do supermercado. mas eu só disse que ele era tão educado. ele apressa o passo e desaparece pelo metro. ela fica dias e dias sem saber onde ele está.

bastava procurares no café ou em casa. foi onde eu estive. é o que ele diz, secamente, quando volta a aparecer. reage como se nada fosse, como se habitualmente ele não lhe enviasse mensagens a toda a hora. como se nada fosse significa nem sequer se lembrar de nada que pudesse ter feito eclodir aquela ausência. nada mesmo, não há nada para dizer, o que é que tu queres. ela baixa os olhos e pensa se não será tudo inventado dentro da sua cabeça. sempre com mariquices, o raio da rapariga.

domingo, setembro 12, 2004

os ciúmes de petra

verónica decidiu morrer mas petra prefere ficar sentada, na paragem do autocarro, quando são sete e pouco da tarde e ela sabe que a carreira 17 parará por ali em segundos. agora é como rezar o terço, missão dia a dia cumprida, naquela mesma hora sagrada do seu amor sair do emprego. a primeira vez foi por acaso. passava ali vinda do supermercado e vê-o despedir-se de uma rapariga bem jovem e atiçada com um beijo muito perto dos lábios. demasiado perto. chegou-se junto deles e disse olá.

o amor está cheio de demónios e casas desfeitas. petra gostava de legos quando era pequena e ainda hoje tem a mania das pequenas construções. mesmo aquelas que demoram anos a acertar as medidas, como a sua história com o amor da vida dela. ele sempre muito gel e barba feita só para ir ali ao café. ela sempre muito atrás dele. o namoro demorou o tempo que ele levou a perceber que ela iria ser para sempre a mulher que ia cuidar dele. ele pensava que ia ser tudo igual. ela sabia que nunca nada iria ser diferente.

agora passam as noites juntos a ver filmes repetidos no canal hollywood. ele vai enchendo e esvaziando copos de whisky, ela excita-se devagar com o bafo quente do álcool a exalar daquele corpo aos seus olhos perfeito. desde o dia do beijo do autocarro, ela segue-lhe ainda mais os passos e ele já percebeu que não se pisa ramo verde quando não se quer acordar a criança. trata-a bem, no seu intricado modo de ser homem. petra adormece a sonhar com princesas e castelos côr-de-rosa. a vida segue dentro do seu círculo habitual.

quinta-feira, setembro 09, 2004

H

agora que já não gostas de mim, faço carreirinhos no chão de terra que separa a minha casa do campo onde trabalho. faço carreirinhos andando com os pés a rastejar, como fazia quando era uma criança de cinco anos. os carreirinhos servem para atrapalhar a vida das formigas. se ainda não sabias, digo-te, é assim que funcionam os homens. se alguém lhes atrapalha a vida, eles vão a correr atrapalhar a vida de outra pessoa qualquer. neste caso, formigas.

quando são seis da tarde, é hora de largar o tractor. faço-me ao caminho a pé, de olhos no chão. antes de chegar a casa páro na adega do Lipas e bebo umas taças de vinho. quando faz calor, costumamos ter umas garrafas de branco no frio. quando está frio bebemos o tinto das pipas. as pipas do Lipas, engraçado, não é? dantes bebia pouco. agora que já não gostas de mim bebo até me fartar. é assim que funcionam os homens. bebem para esquecer.

ao chegar a casa a minha mãe costuma ter o jantar pronto. tomo um duche rápido, como, saio para o café. bebo umas cervejas, jogo às cartas, vejo a bola na televisão. sim, a vida é sempre igual. agora às sextas-feiras o Manequinhas do café mete filmes de putas. espera-se que saia a clientela toda e filme de putas. fico lá eu, ele e mais uns cinco ou seis. cada um dá 2 euros por mês e filmes de putas todas as sextas, às vezes ao sábado, se não tiver ninguém no café. é assim que os homens funcionam, quando deixam de gostar deles. putas.

quarta-feira, setembro 08, 2004

fim do mundo

no outro dia ligaram-me do fim do mundo. alô, alô, não se ouve nada. era uma voz desconhecida e que parecia me insultar. eu tentei não me preocupar muito, afinal quem é que se vai querer meter com um gajo como eu, hein? eu sou um tipo forte, bem parecido, conhecido, reconhecido, vencedor. toda a gente gosta de mim, tenho a certeza. ligaram-me do fim do mundo e não deixaram recado.

depois, voltaram a ligar. eu disse que não estava a reconhecer o indivíduo e que não queria conversas. para quê? mas ele insistia e dizia, vou-te matar, vou-te matar, estás lixado, estás fodido. não se ouve nada, dizia eu. e ele repetia, que repetia, que repetia, e depois desligava. no silêncio ainda eu ouvia um rumor qualquer. depois, voltaram a ligar.

então eu pensei, e se eu fizesse disto um caso para a televisão? eu sou um gajo cheio de ideias, cheio de imaginação, podia lixar o tipo do fim do mundo dizendo que me estavam a ameaçar, ia à televisão, chorava, fingia que estava a fugir, falavam mais de mim, tinham pena de mim, diziam-me força zé e davam-me palmadinhas nas costas. mas o cabrão do fim do mundo não me matou, e acabou por me lixar através desta minha ideia. então eu pensei...

sexta-feira, setembro 03, 2004

o tipo de poesia que eu ando a fazer por estes dias

as coisas simples nascem como as árvores. quando recentes, parecem crianças sem esqueleto, pequenos ramos trémulos e inseguros, sem cor. chegam junto dos nossos olhos e ouvidos, sussurram-nos desejos, abraçam-nos. as coisas simples, de pequenas, tornam-se grandiosas, imprescindíveis. as coisas simples são como as pessoas que amamos.