Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)

quarta-feira, maio 05, 2004

Plano de Evacuação II

Esta tarde olho para a janela da sala e apetece-me procurar um número de telefone na minha agenda, um número de telefone qualquer, seja homem seja mulher, apetece-me abrir a agenda sem pensar, marcar um número sem pensar e dizer, vem fazer amor comigo, como se eu fosse a verdadeira paixão dessa pessoa, como se eu fosse a beleza eterna, o amor de uma vida, vem fazer amor comigo, assim dito ao telefone, parece-me tão bonito, aqui sentada a olhar pela janela da sala, o céu chumbado a querer verter águas e eu tão distraída, vem fazer amor comigo, a imaginar um número de telefone qualquer, tirado da minha agenda sem pensar, marcado no telefone sem pensar, eu aqui tão distraída, tão triste que estou tão feliz com a vida, só para poder dizer, é tão bonito, ao telefone, vem fazer amor comigo, ter o prazer de soletrar, vem... fazer... amor... comigo... à outra pessoa que atende o telefone sem saber que eu aqui tão distraída marquei aquele número sem pensar só para lhe dizer, vem fazer amor comigo.
Hoje vesti só uma camisa por cima das cuecas e passeio-me assim despida com os pés descalços sobre a tijoleira da cozinha, assim tão distraída, olho a janela e lá fora, uma ave plana no vento, não dá às asas porque o vento não a deixa mais do que planar, eu aqui tão distraída, a pousar os pés, um a um, na tijoleira fria do vento, a ave lá fora não dá às asas, eu aqui sem planar, só com o gozo de tocar o chão, assim tão frio, a pensar como era bom ouvir uns sapatos a ecoar no corredor e ao virar a cara para o lugar onde costuma estar a porta, perceber o cheiro de um corpo nu e antes de ver fosse quem fosse, só ouvir uma voz desconhecida, vem fazer amor comigo, só pelo gozo de a ouvir, vem fazer amor comigo, e é tão brutalmente doce estar assim tão pouco despida, os pés gelados no chão da cozinha, respirar a nudez de quem nos surpreende, vem fazer amor comigo, a ave lá fora a planar no chumbo, o céu da cor do vento, águas vertidas ou por verter e aquele cheiro de suor nocturno, aquele cheiro de sexo quando nos dizem, vem fazer amor comigo, eu só de camisa sobre as cuecas, os pés a planar sobre o frio da cozinha, a deixar-me levar pelos braços de um telefone, um homem ou uma mulher, eu sei lá, uma pessoa qualquer, eu sem pensar, estando ali tão distraída, a imaginar, vem fazer amor comigo, sozinha a imaginar, os pés gelados pelo chão, tão calma que sinto encontrar, assim tão distraída, o caminho até ao armário do corredor, sem pensar, abrindo a gaveta que ameaça planar e pousando a mão sobre a agenda.

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