Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)

quarta-feira, maio 05, 2004

plano de evacuação I

1. Gaspar a dizer-me que sim ao meu ouvido, eu com aquela cara de quem quer parecer sereno para toda a gente mas se sente a rebentar por dentro, aquela cara em quem ninguém acredita se eu insisto em dizer que está tudo bem e parece que mais quero dizer que está tudo mal, os meus olhos abertos, vermelhos e eu ali quase a parecer chorar, a parecer quase chorar, eu ali, sentada na cadeira, o Gaspar a dizer-me que sim ao meu ouvido e toda a gente a olhar para mim e a disfarçar, toda a gente a passar os olhos pelos meus olhos a rebentar, toda a gente a fingir que não me vê mas a olhar-me e a disfarçar, disfarçam tão mal, coitados, o Gaspar a dizer sim, sim, ao meu ouvido, sim, sim, sim, ao meu ouvido e toda a gente a olhar sem sequer imaginar o porquê dos meus olhos vermelhos, aos gritos, de sangue, tão altos e só me olham a mim e à minha cara de, talvez, sofrimento, talvez, loucura, só a minha cara, só a minha cara é que eles olham, nem vêem o Gaspar, sim, o Gaspar a dizer-me ao ouvido, sim, e a parecer que nem sequer ali está, sim, nem sequer tem corpo, sim, nem alma, sim, será que sou só eu que o imagino, sim, será mesmo que mais ninguém o vê?
Procuro as minhas mãos, ainda mais confusa, procuro as minhas mãos, estou tão nervosa, credo, procuro as minhas mãos, não as vejo, só sinto que tremem, tremem muito, procuro as minhas mãos porque me parece que elas já não existem, meu deus, parece-me que elas já não existem como mãos, só sinto que tremem, meu deus, tremem muito, procuro as minhas mãos, elas não existem como mãos, saem da sua construção material para onde as não reconheço, os meus olhos à procura, as minhas mãos, sussurro como se as chamasse, os meus olhos à procura e nada, os meus olhos como fechados, sussurro, as minhas mãos, só há uma mesa de café, um cinzeiro, um cigarro ainda fumarento, as minhas mãos, as minhas mãos, um cigarro ainda fumarento, a chávena vazia, o pacote do açúcar amarrotado, os meus olhos à procura, não há mais ninguém à minha volta, sou só eu que digo, as minhas mãos, sou só eu que grito, as minhas mãos, e sem as conseguir encontrar, sem as conseguir perceber, tão fora de si, tão fora de mim elas estão, as minhas mãos, grito desesperada, as minhas mãos, e os olhos das pessoas voltam a focar-me, como se eu estivesse só, como se eu estivesse louca e o Gaspar volta a dizer-me ao ouvido, sim.

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