Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)

domingo, dezembro 14, 2003

arranjo para quarteto de cordas

estou farto de coisas deprimentes, textos deprimentes, programas de televisão deprimentes. passo pelo hipermercado e compro o jantar, depois de um dia no escritório. massa esparguete com carne frita. coloco o saco no lugar do pendura, vazio, como sempre, e sigo o meu caminho pela avenida. tenho três semáforos onde parar, igualmente avermelhados à minha aproximação. na rádio, um locutor excessivamente animado tendo em conta a situação: inverno, fim de tarde, escuro, chuva, frio. no entanto, não me dou ao trabalho de mudar de posto, sigo pelas ruas que me levam até casa. estaciono, pego no saco e saio do carro. ao atravessar a estrada, um homem que está no passeio do outro lado, a uns vinte metros de mim, acena-me e diz "eh luís, ontem é que foi!". tenho que me esforçar para perceber o sentido da frase. ah sim, o sporting.

estou farto de coisas deprimentes, namoros deprimentes, famílias deprimentes. entro no prédio e espero que o elevador me apanhe para me levar ao sexto andar. olho-me no espelho enquanto subo. tenho trinta e dois anos, a barba húmida e os cabelos despenteados, chuva e vento. sinto que o mundo se vai esvaziando debaixo dos meus pés, como se o caminho se desfizesse ao toque da minha sola. ao abrir a porta de casa oiço o telefone a tocar. não atendo. coloco o saco em cima da mesa da cozinha e vou para o meu quarto, despir-me. ligo a rádio e volta a aparecer na minha vida o locutor entusiasmado. procuro um cd em cima da mesa de cabeceira. bach. volume máximo. oiço os violinos a estenderem-se pelos corredores da casa. caminho descalço embalado pelo som e espirro, ao voltar a entrar na cozinha. abro o saco e olho a esparguete, enjoado. ligo a televisão, procuro as notícias. greve da carris. as pessoas queixam-se. desligo a televisão.

estou farto de coisas deprimentes, mensagens deprimentes, amigos deprimentes. caminho até à casa de banho com a barba suja do molho da carne. olho-me no espelho e vejo. homem, trinta e dois anos, olheiras fundas, cavadas numa face emagrecida. barbas em desenvolvimento, negras com promessas brancas. cabelos puxados para trás, húmidos.veste um pijama, com aparência de vários dias de uso. tem os pés descalços. na mão, uma toalha de rosto. faço o caminho inverso, agora para a sala. olho as coisas desarrumadas sobre a mesa e ligo o computador. sucedem-se e-mails desinteressantes, bach estendido pelo meu sofá e pelo meu colo. alguém aparece a dizer-me olá. procuro um sorriso nos emoticons do messenger.

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