Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)

terça-feira, dezembro 30, 2003

isto sou mesmo eu (para quem sempre me quis)

oiço-te agora que já é de noite. oiço-te cantar canções de amor. aqui sentado, onde sempre trabalho ou onde sempre me distraio. sim, estou aqui, no mesmo lugar de sempre. agora que já é de noite. confesso-te, sem nada te dizer, como me é confortável este lugar. aqui, rodeado das minhas coisas, dos meus livros. oico-te agora, cantar canções de amor. essa tua alegria triste contagia-me. levo-te na lembrança agora, para todo o lado onde vou. sabes-me bem quando piso a calçada das ruas desta cidade. é pequena, à minha medida. devias vir cá ver.

invade-me sempre uma doce loucura quando o vejo a ele. exalta-me a sua inteligência. dizemos, a brincar, que nos vamos casar, que somos namorados. rimos, rimos muito. e depois ficamos sentados no café, a pedir algumas imperiais e tremoços, a ralhar com o dono do café que entra sempre na nossa brincadeira, a olhar para o futebol na televisão, a gozar com quem passa do lado de fora da montra. voltamos juntos para casa, e continuamos na louca conversa que mantemos sempre. passamos por uma esquina enconstados um ao outro, a rir. de repente, surgindo alguém, tentamos fazer uma pose séria. e dizemos até amanhã.

deixo o telemóvel ligado durante a noite inteira, à espera de ser acordado. à espera que me liguem. nem que seja para não me dizer nada. preciso que me digam que estão vivos, é essa a minha dependência. saber que alguém pensa em mim. procuro incessantemente uma fala minha na voz dos outros. e quando a leio, fico feliz. não preciso de muito mais. não preciso de te ver, de te ouvir, de te beijar. nunca, mas nunca vou ter saudades disso. preciso só de saber que pensas em mim. é esse o meu estranho modo de ser feliz.

leio Delerm e aponto esta passagem, "sans doute la vraie vie est là, dans la lenteur des pages". tento aprender a escrever mais devagar.

domingo, dezembro 28, 2003

teoria da literatura II

macadamizar-te como uma estrada antiga, é um desejo vulgar, eu sei, mas transformar-te em caminhos antigos, daqueles que se amam mas já muito poucas vezes se utilizam, onde é bom chorar ou beijar, onde é bom deitar, respirar, deleitar o corpo com uma memória quase apagada, mas de resto, esuqecido, longínquo, macadamizado, como uma estrada antiga.
releio-te imensas imensas vezes, como se tudo fosse novidade para mim, nesta minha cabeça de vento onde já nada se fixa a não ser uma enorme sede de estar sozinho e isolado de tudo aquilo que existe, pois tudo o que existe tão facilmente se torna ameaça para mim e para o meu mundo, este meu mundo fechado dentro de casa, cada vez mais quarto, este mundo onde existe uma mesa, é certo, existe uma lâmpada, livros e livros e livros, este mundo onde os discos parecem que tocam todos riscados e onde não está mais ninguém que me possa aliviar a não ser as caixas de comprimidos que dormem ao meu lado na mesa da cabeceira.
quando abro a janela tenho sempre frio, quando entro na cozinha estranho sempre os cheiros do fogão, quando me aproximo da sala as vozes que de lá ecoam são sempre irritantes.arrasto os pés entre o quarto e a casa-de-banho e fico muito muito tempo a olhar a minha cara no espelho, esta cara marcada por uma adolescência eternamente esquecida, esta cara feia que insiste em sorrir para os desconhecidos e que se fecha para quem me quer falar ao coração. não tenho coração, não tenho coração, não tenho coração, repito para mim mesmo até ao infinito.
tiro os chinelos e deito-me sobre a cama, religiosamente. abro um livro e leio, mas sem atenção. tudo o que penso é em mim. percorro o meu corpo à procura do que estou a sentir. passo as páginas sem conseguir retirar nenhum nexo das frases impressas. volto a pensar em macadame, tão parecido com madame. sim. a cabeça dá voltas, voltas.

num certo momento, a explosão

arrumo a papelada em cima da secretária. olho para o relógio envergonhado e penso em como vim aqui parar. arrumo a papelada em montinhos, por temas. páro por segundos para olhar o relógio. reparo que são cinco e meia, já a passar, e tenho vergonha de ainda estar a fazer isto a esta hora. penso em como me deixo atrasar tanto, tantos dias seguidos, mesmo agora que tenho o prazo mesmo a chegar ao fim. arrumo a papelada que estava espalhada por cima da secretária, tento ver aproximadamente do que trata os rabiscos que fiz em cada papel, a origem de cada fotocópia e arrumo-os como se conseguisse definir temas ou algo de parecido nesta minha desorganização. quando parece que tenho as coisas arrumadas, olho para o relógio. cinco e meia. outra tarde passada sem render seja o que fôr. já tenho vergonha de dizer às pessoas em que estado me encontro. dias e dias e dias resumidos a um nada, nada nada feito.

sábado, dezembro 27, 2003

teoria da literatura I

Ainda bem que não tenho cara de escritor. As pessoas poderiam querer esbofetear-me na rua. Penso nisso e por alguns momentos sossego-me, sei que não corro o perigo de ser violentado, de ser agredido devido a uma aparência indesejada. Caminho pelo túnel do metro e sorrio.

O Metropolitano de Lisboa deseja Boa Páscoa a todos os seus utentes, devido a uma avaria técnica o tempo de paragem nas estações pode ser alargado. Uma écharpe lilás voa sobre o carril. Um cigarro solta uma última nuvem de fumo junto a uma placa que diz Perigo de Morte.

Sentado numa plataforma de madeira bastante desconfortável, olho o vazio que é uma cais cheio de gente disforme à espera. A maior parte dos dias não encontro nada de especial para fazer numa estação de metro. Já ninguém toca flauta nem vende chapéus-de-chuva. Curiosamente já nada pode acontecer por aqui. Convivo doentiamente com uma fotografia sem figuras humanas.

Enquanto olho para o telemóvel um comboio chega, pára e parte. Não sei se alguém entrou e duvido que alguém tenha saído. Enquanto olho para o telemóvel, a mesma cena repete-se do outro lado. O cais continua vazio, cheio de gente disforme. A écharpe lilás desapareceu e reparo que entretanto colaram um aviso a dizer Proibido Fumar.

quinta-feira, dezembro 25, 2003

dumelore

Telefonas-me como
Uma hora tardia para outra qualquer pessoa
Nada te fizesse mais sorrir
Do que acordar-me assim
Às horas desfeitas de sonhos e sonos
Margens esquerdas da cama
Onde saliva se aloja quente
E permanece pelo frio
Afinal é hoje de Inverno a noite.

Chegas-te a mim como
Se ainda fosse possível o abraço
Outros tantos braços por encontrar
Esteve aqui ontem não deixou recado
E tu de olhos abertos
A ver-me de olhos fechados
A nudez do teu beijo adormecido
E eu desistindo de tudo enfim
A noite de hoje é igual a outras.

Levanto-me do lugar o teatro
As luzes apagadas e na assistência
Mulheres de seios descobertos oferecem
Namorados de línguas excessivas
Procurando um sopro um gemido um ai
Que possa servir de mão para o vizinho da frente
Enfiada que está assim dentro das calças
Isto é tudo gente séria bem nos dizem
A sessão a seguir tinha sido melhor.

Telefonas-me como eu
Pudesse ser um pouco mais de um litro de água
Abandonado numa prateleira de um
Supermercados em promoções há tantos
Daqueles onde só vão os estrangeiros
E as pessoas que não têm dinheiro para
A meio da noite ramelas nos olhos
Fechados para não ver o escuro tenho medo
E tu lá longe onde quer que estejas
A casa da mãe ou do pai ou a casa
A dizeres suspiros de cinema
E que só queria dormir.

Afinal amanhã também é dia de trabalho
Diferem os nossos feriados e as nossas terapias
Tenho os dedos a contar comprimidos
Em cima da mesa uma fotografia que foi tua
E agora chegou pelo correio com um cartão
Adeus
Como se fosse possível tu dizeres adeus
Ao que nunca te deu ouvidos como
Outros tantos braços em volta de mim
Eu estou cheio de sono podes
Liga-me amanhã amanhã está cá gente.

Também em dias pensei escrever-te
Eu só estou em casa quando não tenho tempo
E vou-te agora dizer o quê
Que a chuva este ano vem mais tarde
E que há um sol por volta das quatro da tarde
Aquecendo-me as sobrancelhas sobre a chávena de chá
E que uma rapariga de olhos grandes me sorri
Enfiadas que estão as mãos nos bolsos
E eu tenho trinta dias para encontrar emprego
Mas o técnico sorri-me também
E nada afinal é importante.

Telefonas para quem o tempo onde
Eu sei que um dia seria melhor atender
Como eu atendo mas afinal não
Falar o quê esqueci as palavras e agora
Tenho as pernas esticadas sobre o colchão
No andar de cima chove em cima das cadeiras
E a televisão está avariada há tanto a antena
Não consigo sequer saber de mim
Procuro pelo mundo e diz-me chuva
O técnico sorri-me também
A antena.

Onde afinal tem início o poema
Que se está escrito alguém o esqueceu em cima da mesa
Como as cascas de fruta três dias
Os restos dos cereais uma semana
O bilhete de metro três horas
Quem esteve nesta casa antes dela ser
Outros braços tantos em minha volta
Telefonas-me como no cinema
Tenho sorte de estar assim gostarem de
E eu choro na noite vazia sem dizer a ninguém.

Como se contam as sílabas deste verso
A meio da noite silêncio dizes mãe
Não está lá ninguém para te ouvir mas no fim
Um filme holandês no terceiro andar
E um vizinho de trombas a fumar na janela
Eu sei que existem cães a passear pelos passeios
Desconheço a dança da chuva
Sequer a época delas agora que nós humanos
Asseados que estão nossos pensamentos
Limpeza afinal refrescante e séria
Seria melhor o silêncio mas
Quem nos diz a que horas chega ele.



domingo, dezembro 21, 2003

cartão de natal

eu bem queria ser um pouco poético, um pouco lí­rico, ter uma qualquer capacidade romântica neste meu 98cm por 180cm, mas, caralho, não consigo. eu sabia que ela ia estar lá na loja e pensava aproveitar esta cena do natal para lhe perguntar se, por acaso, a gaja não quereria ir sair comigo sábado à  noite. vai haver uma party na discoteca, e eu pensei que ela era capaz de gostar, ir até lá curtir um som e o caralho, e depois quando estivesse para a trazer para casa, no carro e coiso, punha um música fixe e era capaz de lhe dizer assim qualquer coisa bonita e pronto, ainda dávamos uns beijos e depois no ano novo podí­amos estar juntos e acho que era bem capaz de ser uma grande entrada no ano novo, caralho, já viram bem, eu e aquela gaja, seria um estrondo. mas como eu sou uma grande besta, fodi o esquema todo, logo na primeira parte. vejam bem esta merda.

entro na porcaria da loja e o que me começou logo a foder foi a amiga dela que trabalha lá também. viu-me entrar e começou-se a rir, a grande cabra. eu levava um cartão de natal, tinha copiado para lá uma cena do Fernando Pessoa e pensei que aquilo não podia falhar. a gaja estava a atender uma cliente e a amiga dela, a grande puta, veio ter comigo, a rir-se, e pergunta o que é que eu desejava e se podia ajudar. eu olhei em volta e não tinha maneira de me escapar daquela merda, só havia roupa de gaja na loja. foi assim, a gaja provocou-me. perguntou-me se eu vinha para encontrar alguma coisa para a namorada ou assim, quando ela sabia muito bem ao que eu vinha, a cabra de merda. levou-me para a secção de lingerie e pôs-se a mostrar-me cuecas e soutiens, eu muito atrapalhado com aquela merda, a gaja sempre a rir-se, a rir-se, a grande puta. e de tal maneira a gaja me lixou, que quando a Márcia me veio dizer olá, estava eu com umas cuecas de renda vermelhas na mão. e com o meu jeito para embrulhar presuntos, disse-lhe logo, tenho aqui uma coisa para ti.

a gaja ficou mais vermelha que uma alface e a puta da amiga dela deu uma gargalhada que fez a loja toda olhar para nós. nesse preciso momento vi o fernando pessoa a ir pelo buraco abaixo. fiquei um bocado a gaguejar, a tentar explicar que não estava ali a fazer nada com aquelas cuecas, que tinha lá ido para lhe dar outra coisa, um cartão de natal e a cabra da outra em vez de se ir embora, diz logo, um cartão, que querido, deixa ver, tira-me a cena das mãos, abre o postal, e começa a ler em voz alta. foi ela que me provocou. a Márcia estava ainda mais vermelha e nem dizia nada nem me olhava sequer. quando a outra leu o poema e o convite para sair e diz que isto que aqui está escrito não tem jeito nenhum, não me controlei. da forma mais educada que consegui, mandei-a ir para o caralho, rebolar-se em merda, disse-lhe que ela era uma cabra ciumenta e que não tinha nada que estar a ler aquilo. a gaja pôs-me fora, a mim e mais ao cartão. a Márcia nem a vi mais. eu bem queria ser um pouco poético, um pouco lí­rico, ter uma qualquer capacidade romântica neste meu 98cm por 180cm, mas, caralho, não consigo.

sábado, dezembro 20, 2003

oh meu amor, quem te disse a ti?

estou rodeado de quadros de motivos bíblico-manga-psicadélicos e oiço uma musiquinha muito irritante a sair das paredes. o ambiente é um bocado escuro, talvez por lá fora ser dia de chuva, sim, lembro-me que lá fora o ar está com aquele cheiro de quem vai chover não tarda muito. talvez tenha sido por isso que entrei aqui. agora já nem me lembro bem. tenho essa música a invadir-me o cérebro e do meu lado direito parece que estão expostos milhares de panos do pó, da loiça, do caraças. sinto uma tontura, dou uns passos para a frente, outros para trás. quando dou por mim tenho um chinês com cara de pânico a dar-me palmadinhas na barba.

enquanto me levam na ambulância desperto um pouco e oiço a conversa dos bombeiros. que ontem à noite, no BAR 31, estava um grande grupo de miúdas completamente bebedas a fazer uma festa qualquer de natal. que um deles tinha lá ido com uns amigos, só para beber uma imperialzita antes de ir para casa mas que tinha ficado a espreitar o entusiasmo das gajas. que ao fim de umas tantas meteu conversa com uma das miúdas, uma que estava a dançar perto do balcão onde ele se tinha encostado. que era assim e assado e frito. que tinha uma saia e uma blusa assim e coiso e tal. pela descrição parece que reconheço a imagem. que saiu com ela e que foram parar a um quarto da pensão onde, pelos vistos, ele leva todas as gajas que engata. que a gaja fartou-se de gritar e lhe deu a volta uma dez vezes. que a gaja fazia broches maravilhosos. que se chamava Ofélia. não há assim tantas Ofélias com 19 anos, comenta. a minha filha. desmaio.

o médico entra-me no quarto com um cigarro apagado pendurado nos lábios. olha para a minha ficha, franze o sobrolho, e ao levantar os olhos para mim exclama, Serafim! Esforço-me por reconhecer o gajo mas nada me vem à ideia. Era um dos putos da minha rua. Passava o tempo a dar-me pontapés no cu sempre que eu vinha da escola. eu era assim meio atado-atarantado, um rapazito calmo, quieto, ninguém dava por mim em lado nenhum, a não ser na minha rua onde todos os putos gostavam de me dar pontapés no cu ou empurrar-me contra a parede. pela nossa amizade, o gajo acende o cigarro e senta-se na cadeira ao lado da cama. que eu devia levar uma vida mais calma, tentar não me enervar. eu permaneço calado, custa-me a falar com a boca presa do lado esquerdo. o gajo fala fala fala. quando dou por ele já está a confessar-me duas amantes e cinco mil euros de dívidas. oiço barulho no corredor, e quando volto a olhar para a porta, a Ofélia, com aquela cara de santinha cheia de olheiras a dizer, papá.eu respiro fundo e (não consigo acenar um não com a cabeça).

sexta-feira, dezembro 19, 2003

ceci n'est pas une famille (mais pourquoi pas??)

ela diz, babe, naquele vozear esticado pela noite inteira, baaabe, nasalizado, como só as femmes fatales sabem fazer. eu estendido na cama, nu, pés frios e cigarro apagado, melhor, beata apagada ao canto da boca a sorrir como só os homens ligeiramente porcos sabem sorrir. ela diz. baaaaaaaabe, imaginem todos estes [a] num só [a] longuíssimo, como só os comboios são longos a subir as montanhas imaginárias da Bolívia e a fazer curvas, curvas, curvas, curvas. e eu sorrio, quieto quase. arrisco-me a dizer, miúda somos únicos. ela abre muito os olhos e desata a gargalhar. eu tento chupar uma última réstia de fumo da beata apagada.

levanto-me e sinto o choque dos pés frios no chão gelado. coço os tomates enquanto caminho para fora do quarto. o corredor está escuro e cheio de porcarias pelo chão, desde todo o tipo de roupas de diversas pessoas a lixo velho, lembranças, bugigangas compradas não se sabe porquê, outras coisas que tiveram uso mas já se esgotaram. à porta do wc acendo mais um cigarro e cantaroleio, fui à loja do mestre andré, tra la la la tra la la. sento-me na sanita e cago. ela vem atrás de mim e pisa um vinil velho que estava caído no corredor. Merda Luís, c'um caralho meu, não sabias arrumar estas merdas? eu cago-me e canto, fui lá comprar uma ganza tra la la la la.

procuro no meio dos cd's qualquer coisa que se possa pôr a tocar em volume máximo. ela está ao meu lado a tentar pôr gelo no pé que ficou meio dorido. escolho uma merda ao calhas, tenho os discos todos nas caixas erradas. ela passa com um cubo de gelo pelas minhas costas e tenta enfiá-lo no meu cu. dou-lhe uma palmada na mão e acendo um cigarro. procuro as calças, visto as primeiras que encontro e uma tshirt que pelo aspecto já não sente àgua desde a última vez que apanhei uma molha. ela pergunta, onde é que vais, baaaaaabe?, e eu rio-me. vou lavar a cona ao rio, lobo mau. ela deixa-se cair na cama e abre as pernas às gargalhadas. eu acendo um cigarro e viro-lhe costas. quando fecho a porta ainda a oiço a gritar cabrão.

quinta-feira, dezembro 18, 2003

ceci n'est pas une famille (possibilidade outra)

deixa-me abrir as janelas para que o frio entre com violência. quero sentir o vento, o arrepio. quero até sentir a chuva se ela cair, e perceber os gritos dos pássaros que são arrastados pelas auto-estradas azuis. deixa-me abrir a janela e puxar a cadeira mesmo para a beira da janela. estender as pernas e colocá-las sobre o parapeito. sentir nos pés o gelo que ameaça cair este inverno. deixa-me congelar. congelar. congelar. fazer deste quarto um frigorífico. para me conservar. tenho que me conservar.

puxo os cabelos que deixei crescer pelos ombros. puxo-os e na minha face avermelhada escorregam lágrimas tensas.debaixo das unhas sai um ligeiro fio de sangue. arrancaram-mas. tinha-me arranhado todo quando as tentei deixar crescer. puxo os cabelos e as lágrimas. pelos ombros, feios e oleosos, sujos e cansados. os cabelos e as lágrimas, pasta de desespero pelo quarto. puxo os cabelos. não adianta vires, não adianta. não vale a pena dizer seja o que fôr. agora não. penduras-te nos meus braços, tentas evitar. puxo os cabelos, as lágrimas.

passeio de gatas para debaixo da cama. tocam telefones e campaínhas lá fora, oiço-as. pasta de desespero. oiço que nos chamam e tu não atendes, tu não atendes, eu sei, tens medo que me levem de ti. tens medo de perder o acesso ao meu sofrimento. oiço as campaínhas, os sinos. tocam o sino na velha igreja da aldeia da minha avó, eu sei, tu não atendes a nada. oiço, oiço. tu não. passeio de gatas. debaixo da cama.

domingo, dezembro 14, 2003

arranjo para quarteto de cordas

estou farto de coisas deprimentes, textos deprimentes, programas de televisão deprimentes. passo pelo hipermercado e compro o jantar, depois de um dia no escritório. massa esparguete com carne frita. coloco o saco no lugar do pendura, vazio, como sempre, e sigo o meu caminho pela avenida. tenho três semáforos onde parar, igualmente avermelhados à minha aproximação. na rádio, um locutor excessivamente animado tendo em conta a situação: inverno, fim de tarde, escuro, chuva, frio. no entanto, não me dou ao trabalho de mudar de posto, sigo pelas ruas que me levam até casa. estaciono, pego no saco e saio do carro. ao atravessar a estrada, um homem que está no passeio do outro lado, a uns vinte metros de mim, acena-me e diz "eh luís, ontem é que foi!". tenho que me esforçar para perceber o sentido da frase. ah sim, o sporting.

estou farto de coisas deprimentes, namoros deprimentes, famílias deprimentes. entro no prédio e espero que o elevador me apanhe para me levar ao sexto andar. olho-me no espelho enquanto subo. tenho trinta e dois anos, a barba húmida e os cabelos despenteados, chuva e vento. sinto que o mundo se vai esvaziando debaixo dos meus pés, como se o caminho se desfizesse ao toque da minha sola. ao abrir a porta de casa oiço o telefone a tocar. não atendo. coloco o saco em cima da mesa da cozinha e vou para o meu quarto, despir-me. ligo a rádio e volta a aparecer na minha vida o locutor entusiasmado. procuro um cd em cima da mesa de cabeceira. bach. volume máximo. oiço os violinos a estenderem-se pelos corredores da casa. caminho descalço embalado pelo som e espirro, ao voltar a entrar na cozinha. abro o saco e olho a esparguete, enjoado. ligo a televisão, procuro as notícias. greve da carris. as pessoas queixam-se. desligo a televisão.

estou farto de coisas deprimentes, mensagens deprimentes, amigos deprimentes. caminho até à casa de banho com a barba suja do molho da carne. olho-me no espelho e vejo. homem, trinta e dois anos, olheiras fundas, cavadas numa face emagrecida. barbas em desenvolvimento, negras com promessas brancas. cabelos puxados para trás, húmidos.veste um pijama, com aparência de vários dias de uso. tem os pés descalços. na mão, uma toalha de rosto. faço o caminho inverso, agora para a sala. olho as coisas desarrumadas sobre a mesa e ligo o computador. sucedem-se e-mails desinteressantes, bach estendido pelo meu sofá e pelo meu colo. alguém aparece a dizer-me olá. procuro um sorriso nos emoticons do messenger.

sexta-feira, dezembro 12, 2003

ceci n'est pas une famille ( quadro um)

ela ri-se, desdentada. tem os cabelos oleosamente despenteados, numa tentativa falhada de rabo de cavalo. ri-se, ri-se muito. muito muito alto. aliás, ela quase que me deixa surdo, que nos deixa surdos, a todos, cá em casa. ela ri-se, ri-se de tudo e de nada, ri-se porque sim e porque não, ri-se, como se não tivesse mais nada para fazer na vida senão rir. tem os olhos esborratados por uma espécie de lápis de cor bastante estranha e que não combina, mas nem no mais arrojado sentido de combinar, com o vermelho insípido com que pintou os lábios.ela ri-se, ri-se. irritantemente.

os putos não se calam, não páram de dizer asneiras. puseram a televisão no volume máximo e estão a ver um filme qualquer que já passou pelo menos umas duzentas vezes em todos os canais de televisão do mundo. os putos não se calam, saltam de um lado para o outro em equilibrismo sobre os sofás, não se calando com a imitação dos índios. o márito e zé fazem de índios, e não se calam, gritam como se gorgorejassem. o pedro e o quim correm atrás deles, gritando tiros tiros tiros pum pum. a anita e a maria gritam princesas raptadas pelos índios, namoradas de cowboys, rainhas selvagens. os putos não se calam, de um lado para o outro. quando um deles, nem reparo qual, passa por mim pisando o pé quando ando á procura do comando para mudar para a bola, leva um tabefe. os putos não se calam, revolução anti-velhote.



sábado, dezembro 06, 2003

deixa lá

agora tenho os dedos compridos como facas. acaricio a minha face com carinho. abro feridas de onde escorre um sangue grosso, consistente. tenho as ideias todas confundidas. estou doente, estou assumidamente doente. tento manter os olhos bem abertos, como se ainda restasse algo para ver. algo que ainda estivesse para além de mim. pendurado no tecto desta sala cujo cheiro é infecto há demasiado tempo. tento esticar as pernas mas não consigo. olho o chão cheio do meu sangue que continua a escorrer. não sei se algum dia vou conseguir sair deste cerco onde me resguardei. tenho medo do lá fora. não que aqui seja mais fácil sobreviver, o sangue, o sangue, mas aqui quem me condena á morte sou eu. não é mais ninguém.

não é mais ninguém.

árvore

digo que te espero e fecho os olhos. o que oiço, neste silêncio infernal da rua vazia, é uma sinfonia triunfal, como que a anunciar a minha derrota. sabes, apesar de seres distante comigo, ás vezes dou por mim a desejar abraçar-te.não é nada de sentimental, acho, é mesmo só uma vontade de te ter nos meus braços, uma necessidade de posse, de poder, de poder, é isso, eu gostava de te poder abraçar, ter-te, carne, objecto, ter-te.digo que te espero e fecho os olhos. tu já não voltas mais.

agora só escrevo coisas muito pequenas, duas três linhas. falta-me o folgo para poder crescer dentro de um texto. o meu único leitor diz-me que deve ser do tempo, este imenso calor de julho que nos queima a testa quando estamos a tentar beber um sumo de laranja numa esplanada perto do mar. eu não sei se será por usar há muito tempo a mesma caneta. enfim, parece que a tinta secou. agora só escrevo coisas muito pequenas. já não há ideias para mais.

aflige-me que te enganes tantas vezes a meu respeito. aflige-me que penses que eu faço coisas por ti ou pelos outros quando afinal eu só estou preocupado comigo. olhas para mim e não me vês, na realidade não me vês. aquilo ali que tu lês como sendo eu é só a imagem que tu projectas de mim. não sei que filósofo sugeriu isto, mas acho que tem razão. pelo menos do teu ponto de vista, tem razão. e isso parece-me já ser significativo. aflige-me que te enganes tantas vezes a meu respeito. e isso parece uma imensa fronteira fechada.

acordo com as calças húmidas junto ao meu sexo. espraiei-me durante a noite.há coisas que eu não consigo sequer justificar. não tenho uma erecção há dois anos e cinco meses e hoje acordo assim, materialmente orgasmático. não sei se me hei-de lavar ou se me sento assim no sofá, a apreciar-me. páro em frente ao espelho, posição de narciso com calmantes. havia alguém da minha família que dizia que eu era um grande animal. acordo com as calças húmidas junto ao sexo. apetece-me fumar.

sexta-feira, dezembro 05, 2003

a sala das manas

ali estava eu, na sala das manas, afundado no sofá, a olhar para um fiozinho de sol que entrava pelo meio dos reposteiros azulões, o gira-discos a tocar uma música muito velha e rouca, intervalada pelos riscos da gravação feita ainda antes dos nossos pais terem casado, o suor a nascer-me nas têmporas, lentamente, como nasce o dia espreguiçado, ali estava eu, na sala das manas, assustado, uma delas, a carolina, dezoito anos de veludo, a dançar mesmo á minha frente, a saia que ia escorregando pelas pernas acima, os braços no ar, os olhos fechados, os cabelos castanhos a esvoaçar por cima dos bibelots, eu nervoso, ali, afundado no sofá, o suor a molhar-me as raízes dos cabelos, a sentir o vento daqueles cabelos, e a outra irmã, sentada, ao meu lado, a mão sobre o meu joelho, nas calças, a brincar com o vinco das calças, a outra irmã, liliana, olhos pretos pretos pretos, a boca desenhada a sorrir-me, a tentar olhar-me nos olhos, a sorrir-me, os cabelos curtos, espetados, a tentar olhar-me nos olhos, ali estava eu, rodeado, na sala das manas, afunilado no sofá, carolina, a dançar na minha frente, o disco velho no gira-discos, no gira-discos, no gira-discos, vejam lá, há tanto tempo que não foi que na minha casa houve um gira-discos, aquele disco rouco, do pai ou da mãe ou de ambos, carolina, dezoito anos, a voar na minha frente, sobre os bibelots, liliana, vinte anos de malícia, a brincar com a mão sobre as minhas calças, sobre o meu joelho, suor, têmpora, os meus cabelos molhados pelo suor, o disco a saltar nos riscos, discos, riscos, eu a olhar aquele fiozinho, um fiozinho de sol, a nascer como nasce o dia, entre os reposteiros, azulões, eu a arder, vermelho, cabelos compridos castanhos, carolina, cabelo curto espetado, liliana, malícia, aquela mão, os bibelots espantados pelo vento dos cabelos, a voar, a tentar olhar-me nos olhos, ali estava eu, na sala das manas, na sala das manas, na sala das manas, os cabelos a voar, carolina, o suor, assutado, ali estava eu, nervoso, na sala das manas.

segunda-feira, dezembro 01, 2003

não dá (soneto shakesperiano)

não dá
não dá
não dá
não dá

não dá
não dá
não dá
não dá

não dá
não dá
não dá
não dá

não dá
não dá

não dá (soneto português)

não dá
não dá
não dá
não dá

não dá
não dá
não dá
não dá

não dá
não dá
não dá

não dá
não dá
não dá