Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)

sexta-feira, setembro 05, 2003

bonzinho

visto um casaco velho que encontrei no roupeiro onde tinha guardado as roupas do meu pai e saio à rua a pensar que certas manhãs, como a de hoje, estão destinadas a levar-nos de encontro a pessoas estranhas. Não, não é o facto de tu seres um parente distante de uma amiga afastada que me apareceu anteontem no café a dizer que havia alguém (neste caso, tu) que me queria muito conhecer, que me tinha visto na televisão e me tinha achado o máximo. agora que ponho os pés na calçada, penso que se eu me fosse encontrar com todas as pessoas que me viram na televisão estava bem tramado. mas tu és o tal parente afastado da amiga distante e isso, acho eu, confere-nos uma certa proximidade.
combinei encontrar-me contigo naquele jardinzinho do cesário verde perto da estefânia. por lá estarei seguro. tem sempre um monte de pássaros para nos cagarem em cima, coisa que me faria dizer-te que o melhor era voltar para casa para limpar o casaco. depois também tem imenso transito ali perto, o que me confere uma certa notabilidade, eu sou o gajo que aparece na televisão e vai-nos ser impossível ter uma conversa sossegada. não sei porquê mas faz-me imensa confusão ter conversas sossegadas com pessoas que não conheço. estou numa fase em que me apetece passar largas horas fechado em casa, a admirar a solidão. ando com medo de ser reconhecido pelas porteiras todas da minha rua.
hesito entre ir a pé ou apanhar o autocarro. puxo os óculos escuros para cima do nariz (tinha-os na cabeça, a prender o cabelo) e vou andando em direcção à paragem. enquanto me aproximo vou estudando mentalmente a descrição que ela (achas possível que não me lembre do nome da gaja?) me fez de ti. alto, com cabelos castanhos bem despenteados, corpinho de ginásio e sempre vestido com calças de ganga muito coçadas e casacos claros. na paragem do autocarro está a filha da madrinha da minha irmã e eu aceno-lhe. decido ir a pé, não me apetece conversar com ninguém. enquanto te tento imaginar vem-me à ideia de que, pela tua descrição, eu devia imediantamente ter recusado o convite. podia sempre ter dito que já tinha combinado um encontro com outro gajo qualquer da televisão ou com uma daquelas gajas dos desfiles de moda. ficava-me bem e tu não levarias a mal.
tenho medo de estar a ser bonzinho. demasiado bonzinho para as pessoas que não conheço. e eu não gosto de ser nada que acabe com um diminutivo. gosto que as pessoas olhem para mim e tenham medo. que pelo menos fiquem na dúvida do que eu sou. à porta de uma tasca, já muito perto do tal jardim, um velho visivelmente com os copos grita-me, ó piu-piu da tvi, anda cá falar comigo. não sei porquê, páro a olhar para ele. tem a cara do meu avô, o sacana. anda cá, anda cá, grita ele. penso nas tuas calças coçadas e nos teus casacos claros. tenho mesmo muito medo de estar a ser bonzinho. entro na tasca e peço duas taças de branco.

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