Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)

terça-feira, dezembro 30, 2003

isto sou mesmo eu (para quem sempre me quis)

oiço-te agora que já é de noite. oiço-te cantar canções de amor. aqui sentado, onde sempre trabalho ou onde sempre me distraio. sim, estou aqui, no mesmo lugar de sempre. agora que já é de noite. confesso-te, sem nada te dizer, como me é confortável este lugar. aqui, rodeado das minhas coisas, dos meus livros. oico-te agora, cantar canções de amor. essa tua alegria triste contagia-me. levo-te na lembrança agora, para todo o lado onde vou. sabes-me bem quando piso a calçada das ruas desta cidade. é pequena, à minha medida. devias vir cá ver.

invade-me sempre uma doce loucura quando o vejo a ele. exalta-me a sua inteligência. dizemos, a brincar, que nos vamos casar, que somos namorados. rimos, rimos muito. e depois ficamos sentados no café, a pedir algumas imperiais e tremoços, a ralhar com o dono do café que entra sempre na nossa brincadeira, a olhar para o futebol na televisão, a gozar com quem passa do lado de fora da montra. voltamos juntos para casa, e continuamos na louca conversa que mantemos sempre. passamos por uma esquina enconstados um ao outro, a rir. de repente, surgindo alguém, tentamos fazer uma pose séria. e dizemos até amanhã.

deixo o telemóvel ligado durante a noite inteira, à espera de ser acordado. à espera que me liguem. nem que seja para não me dizer nada. preciso que me digam que estão vivos, é essa a minha dependência. saber que alguém pensa em mim. procuro incessantemente uma fala minha na voz dos outros. e quando a leio, fico feliz. não preciso de muito mais. não preciso de te ver, de te ouvir, de te beijar. nunca, mas nunca vou ter saudades disso. preciso só de saber que pensas em mim. é esse o meu estranho modo de ser feliz.

leio Delerm e aponto esta passagem, "sans doute la vraie vie est là, dans la lenteur des pages". tento aprender a escrever mais devagar.

domingo, dezembro 28, 2003

teoria da literatura II

macadamizar-te como uma estrada antiga, é um desejo vulgar, eu sei, mas transformar-te em caminhos antigos, daqueles que se amam mas já muito poucas vezes se utilizam, onde é bom chorar ou beijar, onde é bom deitar, respirar, deleitar o corpo com uma memória quase apagada, mas de resto, esuqecido, longínquo, macadamizado, como uma estrada antiga.
releio-te imensas imensas vezes, como se tudo fosse novidade para mim, nesta minha cabeça de vento onde já nada se fixa a não ser uma enorme sede de estar sozinho e isolado de tudo aquilo que existe, pois tudo o que existe tão facilmente se torna ameaça para mim e para o meu mundo, este meu mundo fechado dentro de casa, cada vez mais quarto, este mundo onde existe uma mesa, é certo, existe uma lâmpada, livros e livros e livros, este mundo onde os discos parecem que tocam todos riscados e onde não está mais ninguém que me possa aliviar a não ser as caixas de comprimidos que dormem ao meu lado na mesa da cabeceira.
quando abro a janela tenho sempre frio, quando entro na cozinha estranho sempre os cheiros do fogão, quando me aproximo da sala as vozes que de lá ecoam são sempre irritantes.arrasto os pés entre o quarto e a casa-de-banho e fico muito muito tempo a olhar a minha cara no espelho, esta cara marcada por uma adolescência eternamente esquecida, esta cara feia que insiste em sorrir para os desconhecidos e que se fecha para quem me quer falar ao coração. não tenho coração, não tenho coração, não tenho coração, repito para mim mesmo até ao infinito.
tiro os chinelos e deito-me sobre a cama, religiosamente. abro um livro e leio, mas sem atenção. tudo o que penso é em mim. percorro o meu corpo à procura do que estou a sentir. passo as páginas sem conseguir retirar nenhum nexo das frases impressas. volto a pensar em macadame, tão parecido com madame. sim. a cabeça dá voltas, voltas.

num certo momento, a explosão

arrumo a papelada em cima da secretária. olho para o relógio envergonhado e penso em como vim aqui parar. arrumo a papelada em montinhos, por temas. páro por segundos para olhar o relógio. reparo que são cinco e meia, já a passar, e tenho vergonha de ainda estar a fazer isto a esta hora. penso em como me deixo atrasar tanto, tantos dias seguidos, mesmo agora que tenho o prazo mesmo a chegar ao fim. arrumo a papelada que estava espalhada por cima da secretária, tento ver aproximadamente do que trata os rabiscos que fiz em cada papel, a origem de cada fotocópia e arrumo-os como se conseguisse definir temas ou algo de parecido nesta minha desorganização. quando parece que tenho as coisas arrumadas, olho para o relógio. cinco e meia. outra tarde passada sem render seja o que fôr. já tenho vergonha de dizer às pessoas em que estado me encontro. dias e dias e dias resumidos a um nada, nada nada feito.

sábado, dezembro 27, 2003

teoria da literatura I

Ainda bem que não tenho cara de escritor. As pessoas poderiam querer esbofetear-me na rua. Penso nisso e por alguns momentos sossego-me, sei que não corro o perigo de ser violentado, de ser agredido devido a uma aparência indesejada. Caminho pelo túnel do metro e sorrio.

O Metropolitano de Lisboa deseja Boa Páscoa a todos os seus utentes, devido a uma avaria técnica o tempo de paragem nas estações pode ser alargado. Uma écharpe lilás voa sobre o carril. Um cigarro solta uma última nuvem de fumo junto a uma placa que diz Perigo de Morte.

Sentado numa plataforma de madeira bastante desconfortável, olho o vazio que é uma cais cheio de gente disforme à espera. A maior parte dos dias não encontro nada de especial para fazer numa estação de metro. Já ninguém toca flauta nem vende chapéus-de-chuva. Curiosamente já nada pode acontecer por aqui. Convivo doentiamente com uma fotografia sem figuras humanas.

Enquanto olho para o telemóvel um comboio chega, pára e parte. Não sei se alguém entrou e duvido que alguém tenha saído. Enquanto olho para o telemóvel, a mesma cena repete-se do outro lado. O cais continua vazio, cheio de gente disforme. A écharpe lilás desapareceu e reparo que entretanto colaram um aviso a dizer Proibido Fumar.

quinta-feira, dezembro 25, 2003

dumelore

Telefonas-me como
Uma hora tardia para outra qualquer pessoa
Nada te fizesse mais sorrir
Do que acordar-me assim
Às horas desfeitas de sonhos e sonos
Margens esquerdas da cama
Onde saliva se aloja quente
E permanece pelo frio
Afinal é hoje de Inverno a noite.

Chegas-te a mim como
Se ainda fosse possível o abraço
Outros tantos braços por encontrar
Esteve aqui ontem não deixou recado
E tu de olhos abertos
A ver-me de olhos fechados
A nudez do teu beijo adormecido
E eu desistindo de tudo enfim
A noite de hoje é igual a outras.

Levanto-me do lugar o teatro
As luzes apagadas e na assistência
Mulheres de seios descobertos oferecem
Namorados de línguas excessivas
Procurando um sopro um gemido um ai
Que possa servir de mão para o vizinho da frente
Enfiada que está assim dentro das calças
Isto é tudo gente séria bem nos dizem
A sessão a seguir tinha sido melhor.

Telefonas-me como eu
Pudesse ser um pouco mais de um litro de água
Abandonado numa prateleira de um
Supermercados em promoções há tantos
Daqueles onde só vão os estrangeiros
E as pessoas que não têm dinheiro para
A meio da noite ramelas nos olhos
Fechados para não ver o escuro tenho medo
E tu lá longe onde quer que estejas
A casa da mãe ou do pai ou a casa
A dizeres suspiros de cinema
E que só queria dormir.

Afinal amanhã também é dia de trabalho
Diferem os nossos feriados e as nossas terapias
Tenho os dedos a contar comprimidos
Em cima da mesa uma fotografia que foi tua
E agora chegou pelo correio com um cartão
Adeus
Como se fosse possível tu dizeres adeus
Ao que nunca te deu ouvidos como
Outros tantos braços em volta de mim
Eu estou cheio de sono podes
Liga-me amanhã amanhã está cá gente.

Também em dias pensei escrever-te
Eu só estou em casa quando não tenho tempo
E vou-te agora dizer o quê
Que a chuva este ano vem mais tarde
E que há um sol por volta das quatro da tarde
Aquecendo-me as sobrancelhas sobre a chávena de chá
E que uma rapariga de olhos grandes me sorri
Enfiadas que estão as mãos nos bolsos
E eu tenho trinta dias para encontrar emprego
Mas o técnico sorri-me também
E nada afinal é importante.

Telefonas para quem o tempo onde
Eu sei que um dia seria melhor atender
Como eu atendo mas afinal não
Falar o quê esqueci as palavras e agora
Tenho as pernas esticadas sobre o colchão
No andar de cima chove em cima das cadeiras
E a televisão está avariada há tanto a antena
Não consigo sequer saber de mim
Procuro pelo mundo e diz-me chuva
O técnico sorri-me também
A antena.

Onde afinal tem início o poema
Que se está escrito alguém o esqueceu em cima da mesa
Como as cascas de fruta três dias
Os restos dos cereais uma semana
O bilhete de metro três horas
Quem esteve nesta casa antes dela ser
Outros braços tantos em minha volta
Telefonas-me como no cinema
Tenho sorte de estar assim gostarem de
E eu choro na noite vazia sem dizer a ninguém.

Como se contam as sílabas deste verso
A meio da noite silêncio dizes mãe
Não está lá ninguém para te ouvir mas no fim
Um filme holandês no terceiro andar
E um vizinho de trombas a fumar na janela
Eu sei que existem cães a passear pelos passeios
Desconheço a dança da chuva
Sequer a época delas agora que nós humanos
Asseados que estão nossos pensamentos
Limpeza afinal refrescante e séria
Seria melhor o silêncio mas
Quem nos diz a que horas chega ele.



domingo, dezembro 21, 2003

cartão de natal

eu bem queria ser um pouco poético, um pouco lí­rico, ter uma qualquer capacidade romântica neste meu 98cm por 180cm, mas, caralho, não consigo. eu sabia que ela ia estar lá na loja e pensava aproveitar esta cena do natal para lhe perguntar se, por acaso, a gaja não quereria ir sair comigo sábado à  noite. vai haver uma party na discoteca, e eu pensei que ela era capaz de gostar, ir até lá curtir um som e o caralho, e depois quando estivesse para a trazer para casa, no carro e coiso, punha um música fixe e era capaz de lhe dizer assim qualquer coisa bonita e pronto, ainda dávamos uns beijos e depois no ano novo podí­amos estar juntos e acho que era bem capaz de ser uma grande entrada no ano novo, caralho, já viram bem, eu e aquela gaja, seria um estrondo. mas como eu sou uma grande besta, fodi o esquema todo, logo na primeira parte. vejam bem esta merda.

entro na porcaria da loja e o que me começou logo a foder foi a amiga dela que trabalha lá também. viu-me entrar e começou-se a rir, a grande cabra. eu levava um cartão de natal, tinha copiado para lá uma cena do Fernando Pessoa e pensei que aquilo não podia falhar. a gaja estava a atender uma cliente e a amiga dela, a grande puta, veio ter comigo, a rir-se, e pergunta o que é que eu desejava e se podia ajudar. eu olhei em volta e não tinha maneira de me escapar daquela merda, só havia roupa de gaja na loja. foi assim, a gaja provocou-me. perguntou-me se eu vinha para encontrar alguma coisa para a namorada ou assim, quando ela sabia muito bem ao que eu vinha, a cabra de merda. levou-me para a secção de lingerie e pôs-se a mostrar-me cuecas e soutiens, eu muito atrapalhado com aquela merda, a gaja sempre a rir-se, a rir-se, a grande puta. e de tal maneira a gaja me lixou, que quando a Márcia me veio dizer olá, estava eu com umas cuecas de renda vermelhas na mão. e com o meu jeito para embrulhar presuntos, disse-lhe logo, tenho aqui uma coisa para ti.

a gaja ficou mais vermelha que uma alface e a puta da amiga dela deu uma gargalhada que fez a loja toda olhar para nós. nesse preciso momento vi o fernando pessoa a ir pelo buraco abaixo. fiquei um bocado a gaguejar, a tentar explicar que não estava ali a fazer nada com aquelas cuecas, que tinha lá ido para lhe dar outra coisa, um cartão de natal e a cabra da outra em vez de se ir embora, diz logo, um cartão, que querido, deixa ver, tira-me a cena das mãos, abre o postal, e começa a ler em voz alta. foi ela que me provocou. a Márcia estava ainda mais vermelha e nem dizia nada nem me olhava sequer. quando a outra leu o poema e o convite para sair e diz que isto que aqui está escrito não tem jeito nenhum, não me controlei. da forma mais educada que consegui, mandei-a ir para o caralho, rebolar-se em merda, disse-lhe que ela era uma cabra ciumenta e que não tinha nada que estar a ler aquilo. a gaja pôs-me fora, a mim e mais ao cartão. a Márcia nem a vi mais. eu bem queria ser um pouco poético, um pouco lí­rico, ter uma qualquer capacidade romântica neste meu 98cm por 180cm, mas, caralho, não consigo.

sábado, dezembro 20, 2003

oh meu amor, quem te disse a ti?

estou rodeado de quadros de motivos bíblico-manga-psicadélicos e oiço uma musiquinha muito irritante a sair das paredes. o ambiente é um bocado escuro, talvez por lá fora ser dia de chuva, sim, lembro-me que lá fora o ar está com aquele cheiro de quem vai chover não tarda muito. talvez tenha sido por isso que entrei aqui. agora já nem me lembro bem. tenho essa música a invadir-me o cérebro e do meu lado direito parece que estão expostos milhares de panos do pó, da loiça, do caraças. sinto uma tontura, dou uns passos para a frente, outros para trás. quando dou por mim tenho um chinês com cara de pânico a dar-me palmadinhas na barba.

enquanto me levam na ambulância desperto um pouco e oiço a conversa dos bombeiros. que ontem à noite, no BAR 31, estava um grande grupo de miúdas completamente bebedas a fazer uma festa qualquer de natal. que um deles tinha lá ido com uns amigos, só para beber uma imperialzita antes de ir para casa mas que tinha ficado a espreitar o entusiasmo das gajas. que ao fim de umas tantas meteu conversa com uma das miúdas, uma que estava a dançar perto do balcão onde ele se tinha encostado. que era assim e assado e frito. que tinha uma saia e uma blusa assim e coiso e tal. pela descrição parece que reconheço a imagem. que saiu com ela e que foram parar a um quarto da pensão onde, pelos vistos, ele leva todas as gajas que engata. que a gaja fartou-se de gritar e lhe deu a volta uma dez vezes. que a gaja fazia broches maravilhosos. que se chamava Ofélia. não há assim tantas Ofélias com 19 anos, comenta. a minha filha. desmaio.

o médico entra-me no quarto com um cigarro apagado pendurado nos lábios. olha para a minha ficha, franze o sobrolho, e ao levantar os olhos para mim exclama, Serafim! Esforço-me por reconhecer o gajo mas nada me vem à ideia. Era um dos putos da minha rua. Passava o tempo a dar-me pontapés no cu sempre que eu vinha da escola. eu era assim meio atado-atarantado, um rapazito calmo, quieto, ninguém dava por mim em lado nenhum, a não ser na minha rua onde todos os putos gostavam de me dar pontapés no cu ou empurrar-me contra a parede. pela nossa amizade, o gajo acende o cigarro e senta-se na cadeira ao lado da cama. que eu devia levar uma vida mais calma, tentar não me enervar. eu permaneço calado, custa-me a falar com a boca presa do lado esquerdo. o gajo fala fala fala. quando dou por ele já está a confessar-me duas amantes e cinco mil euros de dívidas. oiço barulho no corredor, e quando volto a olhar para a porta, a Ofélia, com aquela cara de santinha cheia de olheiras a dizer, papá.eu respiro fundo e (não consigo acenar um não com a cabeça).

sexta-feira, dezembro 19, 2003

ceci n'est pas une famille (mais pourquoi pas??)

ela diz, babe, naquele vozear esticado pela noite inteira, baaabe, nasalizado, como só as femmes fatales sabem fazer. eu estendido na cama, nu, pés frios e cigarro apagado, melhor, beata apagada ao canto da boca a sorrir como só os homens ligeiramente porcos sabem sorrir. ela diz. baaaaaaaabe, imaginem todos estes [a] num só [a] longuíssimo, como só os comboios são longos a subir as montanhas imaginárias da Bolívia e a fazer curvas, curvas, curvas, curvas. e eu sorrio, quieto quase. arrisco-me a dizer, miúda somos únicos. ela abre muito os olhos e desata a gargalhar. eu tento chupar uma última réstia de fumo da beata apagada.

levanto-me e sinto o choque dos pés frios no chão gelado. coço os tomates enquanto caminho para fora do quarto. o corredor está escuro e cheio de porcarias pelo chão, desde todo o tipo de roupas de diversas pessoas a lixo velho, lembranças, bugigangas compradas não se sabe porquê, outras coisas que tiveram uso mas já se esgotaram. à porta do wc acendo mais um cigarro e cantaroleio, fui à loja do mestre andré, tra la la la tra la la. sento-me na sanita e cago. ela vem atrás de mim e pisa um vinil velho que estava caído no corredor. Merda Luís, c'um caralho meu, não sabias arrumar estas merdas? eu cago-me e canto, fui lá comprar uma ganza tra la la la la.

procuro no meio dos cd's qualquer coisa que se possa pôr a tocar em volume máximo. ela está ao meu lado a tentar pôr gelo no pé que ficou meio dorido. escolho uma merda ao calhas, tenho os discos todos nas caixas erradas. ela passa com um cubo de gelo pelas minhas costas e tenta enfiá-lo no meu cu. dou-lhe uma palmada na mão e acendo um cigarro. procuro as calças, visto as primeiras que encontro e uma tshirt que pelo aspecto já não sente àgua desde a última vez que apanhei uma molha. ela pergunta, onde é que vais, baaaaaabe?, e eu rio-me. vou lavar a cona ao rio, lobo mau. ela deixa-se cair na cama e abre as pernas às gargalhadas. eu acendo um cigarro e viro-lhe costas. quando fecho a porta ainda a oiço a gritar cabrão.

quinta-feira, dezembro 18, 2003

ceci n'est pas une famille (possibilidade outra)

deixa-me abrir as janelas para que o frio entre com violência. quero sentir o vento, o arrepio. quero até sentir a chuva se ela cair, e perceber os gritos dos pássaros que são arrastados pelas auto-estradas azuis. deixa-me abrir a janela e puxar a cadeira mesmo para a beira da janela. estender as pernas e colocá-las sobre o parapeito. sentir nos pés o gelo que ameaça cair este inverno. deixa-me congelar. congelar. congelar. fazer deste quarto um frigorífico. para me conservar. tenho que me conservar.

puxo os cabelos que deixei crescer pelos ombros. puxo-os e na minha face avermelhada escorregam lágrimas tensas.debaixo das unhas sai um ligeiro fio de sangue. arrancaram-mas. tinha-me arranhado todo quando as tentei deixar crescer. puxo os cabelos e as lágrimas. pelos ombros, feios e oleosos, sujos e cansados. os cabelos e as lágrimas, pasta de desespero pelo quarto. puxo os cabelos. não adianta vires, não adianta. não vale a pena dizer seja o que fôr. agora não. penduras-te nos meus braços, tentas evitar. puxo os cabelos, as lágrimas.

passeio de gatas para debaixo da cama. tocam telefones e campaínhas lá fora, oiço-as. pasta de desespero. oiço que nos chamam e tu não atendes, tu não atendes, eu sei, tens medo que me levem de ti. tens medo de perder o acesso ao meu sofrimento. oiço as campaínhas, os sinos. tocam o sino na velha igreja da aldeia da minha avó, eu sei, tu não atendes a nada. oiço, oiço. tu não. passeio de gatas. debaixo da cama.

domingo, dezembro 14, 2003

arranjo para quarteto de cordas

estou farto de coisas deprimentes, textos deprimentes, programas de televisão deprimentes. passo pelo hipermercado e compro o jantar, depois de um dia no escritório. massa esparguete com carne frita. coloco o saco no lugar do pendura, vazio, como sempre, e sigo o meu caminho pela avenida. tenho três semáforos onde parar, igualmente avermelhados à minha aproximação. na rádio, um locutor excessivamente animado tendo em conta a situação: inverno, fim de tarde, escuro, chuva, frio. no entanto, não me dou ao trabalho de mudar de posto, sigo pelas ruas que me levam até casa. estaciono, pego no saco e saio do carro. ao atravessar a estrada, um homem que está no passeio do outro lado, a uns vinte metros de mim, acena-me e diz "eh luís, ontem é que foi!". tenho que me esforçar para perceber o sentido da frase. ah sim, o sporting.

estou farto de coisas deprimentes, namoros deprimentes, famílias deprimentes. entro no prédio e espero que o elevador me apanhe para me levar ao sexto andar. olho-me no espelho enquanto subo. tenho trinta e dois anos, a barba húmida e os cabelos despenteados, chuva e vento. sinto que o mundo se vai esvaziando debaixo dos meus pés, como se o caminho se desfizesse ao toque da minha sola. ao abrir a porta de casa oiço o telefone a tocar. não atendo. coloco o saco em cima da mesa da cozinha e vou para o meu quarto, despir-me. ligo a rádio e volta a aparecer na minha vida o locutor entusiasmado. procuro um cd em cima da mesa de cabeceira. bach. volume máximo. oiço os violinos a estenderem-se pelos corredores da casa. caminho descalço embalado pelo som e espirro, ao voltar a entrar na cozinha. abro o saco e olho a esparguete, enjoado. ligo a televisão, procuro as notícias. greve da carris. as pessoas queixam-se. desligo a televisão.

estou farto de coisas deprimentes, mensagens deprimentes, amigos deprimentes. caminho até à casa de banho com a barba suja do molho da carne. olho-me no espelho e vejo. homem, trinta e dois anos, olheiras fundas, cavadas numa face emagrecida. barbas em desenvolvimento, negras com promessas brancas. cabelos puxados para trás, húmidos.veste um pijama, com aparência de vários dias de uso. tem os pés descalços. na mão, uma toalha de rosto. faço o caminho inverso, agora para a sala. olho as coisas desarrumadas sobre a mesa e ligo o computador. sucedem-se e-mails desinteressantes, bach estendido pelo meu sofá e pelo meu colo. alguém aparece a dizer-me olá. procuro um sorriso nos emoticons do messenger.

sexta-feira, dezembro 12, 2003

ceci n'est pas une famille ( quadro um)

ela ri-se, desdentada. tem os cabelos oleosamente despenteados, numa tentativa falhada de rabo de cavalo. ri-se, ri-se muito. muito muito alto. aliás, ela quase que me deixa surdo, que nos deixa surdos, a todos, cá em casa. ela ri-se, ri-se de tudo e de nada, ri-se porque sim e porque não, ri-se, como se não tivesse mais nada para fazer na vida senão rir. tem os olhos esborratados por uma espécie de lápis de cor bastante estranha e que não combina, mas nem no mais arrojado sentido de combinar, com o vermelho insípido com que pintou os lábios.ela ri-se, ri-se. irritantemente.

os putos não se calam, não páram de dizer asneiras. puseram a televisão no volume máximo e estão a ver um filme qualquer que já passou pelo menos umas duzentas vezes em todos os canais de televisão do mundo. os putos não se calam, saltam de um lado para o outro em equilibrismo sobre os sofás, não se calando com a imitação dos índios. o márito e zé fazem de índios, e não se calam, gritam como se gorgorejassem. o pedro e o quim correm atrás deles, gritando tiros tiros tiros pum pum. a anita e a maria gritam princesas raptadas pelos índios, namoradas de cowboys, rainhas selvagens. os putos não se calam, de um lado para o outro. quando um deles, nem reparo qual, passa por mim pisando o pé quando ando á procura do comando para mudar para a bola, leva um tabefe. os putos não se calam, revolução anti-velhote.



sábado, dezembro 06, 2003

deixa lá

agora tenho os dedos compridos como facas. acaricio a minha face com carinho. abro feridas de onde escorre um sangue grosso, consistente. tenho as ideias todas confundidas. estou doente, estou assumidamente doente. tento manter os olhos bem abertos, como se ainda restasse algo para ver. algo que ainda estivesse para além de mim. pendurado no tecto desta sala cujo cheiro é infecto há demasiado tempo. tento esticar as pernas mas não consigo. olho o chão cheio do meu sangue que continua a escorrer. não sei se algum dia vou conseguir sair deste cerco onde me resguardei. tenho medo do lá fora. não que aqui seja mais fácil sobreviver, o sangue, o sangue, mas aqui quem me condena á morte sou eu. não é mais ninguém.

não é mais ninguém.

árvore

digo que te espero e fecho os olhos. o que oiço, neste silêncio infernal da rua vazia, é uma sinfonia triunfal, como que a anunciar a minha derrota. sabes, apesar de seres distante comigo, ás vezes dou por mim a desejar abraçar-te.não é nada de sentimental, acho, é mesmo só uma vontade de te ter nos meus braços, uma necessidade de posse, de poder, de poder, é isso, eu gostava de te poder abraçar, ter-te, carne, objecto, ter-te.digo que te espero e fecho os olhos. tu já não voltas mais.

agora só escrevo coisas muito pequenas, duas três linhas. falta-me o folgo para poder crescer dentro de um texto. o meu único leitor diz-me que deve ser do tempo, este imenso calor de julho que nos queima a testa quando estamos a tentar beber um sumo de laranja numa esplanada perto do mar. eu não sei se será por usar há muito tempo a mesma caneta. enfim, parece que a tinta secou. agora só escrevo coisas muito pequenas. já não há ideias para mais.

aflige-me que te enganes tantas vezes a meu respeito. aflige-me que penses que eu faço coisas por ti ou pelos outros quando afinal eu só estou preocupado comigo. olhas para mim e não me vês, na realidade não me vês. aquilo ali que tu lês como sendo eu é só a imagem que tu projectas de mim. não sei que filósofo sugeriu isto, mas acho que tem razão. pelo menos do teu ponto de vista, tem razão. e isso parece-me já ser significativo. aflige-me que te enganes tantas vezes a meu respeito. e isso parece uma imensa fronteira fechada.

acordo com as calças húmidas junto ao meu sexo. espraiei-me durante a noite.há coisas que eu não consigo sequer justificar. não tenho uma erecção há dois anos e cinco meses e hoje acordo assim, materialmente orgasmático. não sei se me hei-de lavar ou se me sento assim no sofá, a apreciar-me. páro em frente ao espelho, posição de narciso com calmantes. havia alguém da minha família que dizia que eu era um grande animal. acordo com as calças húmidas junto ao sexo. apetece-me fumar.

sexta-feira, dezembro 05, 2003

a sala das manas

ali estava eu, na sala das manas, afundado no sofá, a olhar para um fiozinho de sol que entrava pelo meio dos reposteiros azulões, o gira-discos a tocar uma música muito velha e rouca, intervalada pelos riscos da gravação feita ainda antes dos nossos pais terem casado, o suor a nascer-me nas têmporas, lentamente, como nasce o dia espreguiçado, ali estava eu, na sala das manas, assustado, uma delas, a carolina, dezoito anos de veludo, a dançar mesmo á minha frente, a saia que ia escorregando pelas pernas acima, os braços no ar, os olhos fechados, os cabelos castanhos a esvoaçar por cima dos bibelots, eu nervoso, ali, afundado no sofá, o suor a molhar-me as raízes dos cabelos, a sentir o vento daqueles cabelos, e a outra irmã, sentada, ao meu lado, a mão sobre o meu joelho, nas calças, a brincar com o vinco das calças, a outra irmã, liliana, olhos pretos pretos pretos, a boca desenhada a sorrir-me, a tentar olhar-me nos olhos, a sorrir-me, os cabelos curtos, espetados, a tentar olhar-me nos olhos, ali estava eu, rodeado, na sala das manas, afunilado no sofá, carolina, a dançar na minha frente, o disco velho no gira-discos, no gira-discos, no gira-discos, vejam lá, há tanto tempo que não foi que na minha casa houve um gira-discos, aquele disco rouco, do pai ou da mãe ou de ambos, carolina, dezoito anos, a voar na minha frente, sobre os bibelots, liliana, vinte anos de malícia, a brincar com a mão sobre as minhas calças, sobre o meu joelho, suor, têmpora, os meus cabelos molhados pelo suor, o disco a saltar nos riscos, discos, riscos, eu a olhar aquele fiozinho, um fiozinho de sol, a nascer como nasce o dia, entre os reposteiros, azulões, eu a arder, vermelho, cabelos compridos castanhos, carolina, cabelo curto espetado, liliana, malícia, aquela mão, os bibelots espantados pelo vento dos cabelos, a voar, a tentar olhar-me nos olhos, ali estava eu, na sala das manas, na sala das manas, na sala das manas, os cabelos a voar, carolina, o suor, assutado, ali estava eu, nervoso, na sala das manas.

segunda-feira, dezembro 01, 2003

não dá (soneto shakesperiano)

não dá
não dá
não dá
não dá

não dá
não dá
não dá
não dá

não dá
não dá
não dá
não dá

não dá
não dá

não dá (soneto português)

não dá
não dá
não dá
não dá

não dá
não dá
não dá
não dá

não dá
não dá
não dá

não dá
não dá
não dá

domingo, novembro 23, 2003

cena do cigarro

tu sentada no café, a fazeres essa cara de princesa automática, e o gajo sentado ao teu lado, armado em ricky martin, a fazer-te olhinhos através do copo de sagres preta. tu não lhe ligas nenhuma, nunca lhe poderias ligar nenhuma, ele é exactamente o oposto daquilo que tu gostarias de ter esta noite (e em todas as noites que te restam pela vida toda). acho que tu nem o viste entrar, ele veio, mediu-te toda com aquele olhar de cabrito por assar, sorriu ao de leve por dentro e veio sentar-se ao balcão, quase ao teu lado. tu continuas a olhar para a televisão, apesar de estar a dar futebol e tu não perceberes nada disso. olhas para a televisão porque achas que é uma boa ginástica para a vista. querias deixar de usar óculos, para poderes ver as pilas dos gajos com nitidez quando eles despem as calças no teu quarto e tu já estás deitada.
o gajo bebe a espuma de cerveja com muito vagar, faz parte do quadro do sensual de pacotilha, fazer tudo muito devagar, com um sorriso nos lábios, confiante, e a olhar de lado para a miúda que quer apanhar ( que muitas vezes são várias ao mesmo tempo). mete a mão ao bolso do casaco ( tudo em câmara lenta), retira o maço de cigarros, olha para o aviso [Prejudica gravemente a sua performance sexual] e sorri como quem diz impossí­vel. olha serenamente o interior do maço, escolhe um dos cigarros como se eles fossem diferentes e faz um movimento em super slow motion para acendê-lo. entretanto pede-te para lhe passares o cinzeiro. tu empurra-lo com algum desprezo. ele esboça uma piada. tu olhas para a televisão e chamas-lhe chato. ele sorri. sente que te está a conquistar.
quando pedes a conta e começas a arrumar todas as tuas tralhas no saco ele percebe que vai ter que agir rapidamente. pede-te o jornal, um guardanapo, pergunta-te as horas. tu respondes a tudo a achar pouquí­ssima graça aquela brincadeira. o gajo está a ficar aflito, mas sem coragem para perguntar o teu nome ou oferecer-te uma bebida. pagas, vestes o casaco e quando te vais a dirigir para a porta, olhas para trás, ris-te e dizes, sou lésbica. o gajo engasga-se um bocado e chama-te mentirosa. tu paras em frente à porta e fazes a cena do cigarro em slow motion. o gajo olha para a televisão.

sábado, novembro 22, 2003

coisas coisas coisas...

e quando me sentei em frente ao portátil para escrever a história da minha vida, veio-me à cabeça esta ideia: foda-se, não me peçam para escrever. era uma ideia suicida, agora que tinha largado todas as outras fontes de rendimento possíveis na minha vida para ser escritor. decidi-me pelo mais prudente. fingir que nada se tinha passado. e voltei a adormecer calmamente.

sexta-feira, novembro 14, 2003

little angel falling down...

mami, dizia ela, deixa-me ver a rua, e a mãe a dar-lhe palmadinhas nas mãos e a passar-lhe os lábios pela testa a confirmar que a febre não descia nem um bocadinho. deixa-me ver a rua, deixa-me ver a rua, repetia ela até à exaustão em que quase adormecia. a mãe levantava-se um pouco, a tentar certificar-se que a casa continuava igual para além daquele quarto em que permanecia fechada há dias. a febre, uma febre estranha que aparecera sem aviso e sem razão ainda descoberta. que tornava a pequena mariana mais pálida, mais frágil ainda do que já era. embora não lhe tirasse aquela ânsia de rua que sempre tinha desde muito muito pequena. mami, deixa-me ver a rua, dizia ela, recuperada do sono. e a mãe sentava-se de novo ao seu lado.

lá fora chovia chovia chovia, como não chovia há imensos imensos dias.o céu estava escuro, aquele cinzento escuro da massa de cimento fresca. e a chuva caía como caem os prédios, os tijolos, as marretas nas poças de água. os vidros pareciam querer fugir ao dilúvio, como que ondulando com a força da água e do vento. não se via ninguém. só faróis de carros que seguiam muito devagar, a tentar encontrar o caminho por entre aquele oceano entre prédios. as lojas pareciam já ter fechado. três da tarde e já era noite há tanto tempo. raquel, a mãe, deixava cair uma lágrima de desespero. com o tempo assim ninguém viria visitá-la, ajudá-la com um olá. com o tempo assim nem a avó, nem o primo, niguém viria passar a mão pela testa da pequena mariana.chovia chovia chovia.

não há rua nenhuma para ver, mariana, está tudo escuro. mariana de olhos semi-cerrados a tentar perceber as palavras da mãe. não há rua, a febre, dói-lhe a cabeça mas ela ainda não sabe, só tem um sono que não consegue explicar, nem sabe como se diz, apenas lhe apetece ver a rua, os carros, pessoas, qualquer coisa, apetece-lhe ver os desenhos animados, a televisão, o papá, apetece-lhe qualquer coisa que ela ainda não sabe dizer, mas é bom estar ali, com os miminhos da mamã, não há rua nenhuma para ver, está tudo escuro. escuro, deve ser de noite, e o papá?, ainda está no trabalho, a ganhar o dinheirinho, escuro, deve ser de noite, não está cá ninguém, e a febre, tanta coisa em que pensar, tanta coisa que mariana ainda não sabe dizer, mami, deixas-me ver a rua?, não, e a avó?

quinta-feira, novembro 13, 2003

stôr rimbaud

tenho os dedos das mãos frios... muito frios mesmo. queria dizer-te que ando para aqui a olhar as pessoas das mesas que sobram pelo café e que não encontro nada nem ninguém melhor do que eu. sim, é chato esta vida de gajo triste numa terra de merda. afinal, tinhas tu razão, não há mesmo nada que se possa fazer por aqui. saio das aulas pelas quatro da tarde e sento-me aqui. exactamente daqui de onde te escrevo. gostava de te poder contar histórias bonitas. sim, eu sei, tu esperas que eu te conte histórias bonitas. mas sabes bem como é difícil inventar histórias assim, das que tu gostas.

peço uma imperial. peço várias imperiais. passa um casal de alunos meus e diz-me olá stôr enquanto correm não sei bem para onde. ainda nem me dei ao trabalho de ir procurar o que há pela vila, para além deste pequeno triângulo escola casa café. peço várias imperiais. molho a borda do papel em que te escrevo. não volto atrás, escrevo tudo até ao fim. assim levas uma marca da minha vida, sabes, este papel fui eu mesmo que toquei, esta é mesmo a minha letra e esta é a mesma imperial que eu estou a beber enquanto penso nestas coisas. sim, aqui a vida é real. eu bebo para a literarizar.

quando a tarde começa a esfriar, o homem do café olha-me com cara de quem me queria ver ir para casa. a essa hora peço um vodka, para aquecer. ele sabe que eu nunca saio daqui antes das dez, onze da noite. não aguento entrar naquela casa vazia, ficar lá sozinho com esta minha imensa depressão de professor em escola de província.ainda pensei em tornar-me numa espécie de régio ou vergílio ferreira. eu sei, eu e as minhas ideias parvas. ainda pensei em escrever e em elaborar um enorme tratado filosófico neste exílio. mas não, peço imperiais, peço várias imperiais. e quando vou para casa é com aquele enorme peso nas pernas. a bebida não me excita nada.

escrevo-te daqui como quem diz socorro. como quem olha sem conseguir soletrar uma palavra mas tem no olhar todo o desespero do mundo. eu sei que sou um pouco trágico, exagerado até. mas é esta minha tendência para ser muito pior do que sou que me faz cair neste buraco. peço-te desculpa por ficar aqui parado, a beber, só te escrevendo esta carta, por muito cheia de mim que ela siga. eu estou aqui e não consigo sair antes das dez ou onze da noite. como se fosse um imponderável, esta minha entrada nos infernos. clamando por rimbaud, sem poder molhar os pés, sequer pô-los fora da barca.

terça-feira, novembro 11, 2003

jeitosa

A criança colheu com a sua pequena mão um arbusto caído nesta escura tarde de outono. Pegou nele, observando-o com cuidado, recorrendo ao olhar inteligente que caracteriza as crianças em estado puro de observação. Apertou-o com doçura entre os seus frágeis dedos. Levou-o para casa. Como a uma árvore de fruto.

A sua missão era entregar a caixa dos pequenos fios em casa do seu amado primo. Era uma coisa de infância, esta paixão. Iniciara-se quando tinham três, quatro anos, na cumplicidade das tardes passadas na sala da avó. Entre eles descobriram o que difere os meninos das meninas. Entre eles tocaram pela primeira vez a frescura de uns lábios. Entre eles prometeram segredos, como só trocam os amantes. A sua missão era entregar a caixa dos pequenos fios em casa do seu amado primo. Estacou perante a porta. Olhou o chão.

Guardado dentro da gaveta, era aí que esperava que ele crescesse. Para isso lia-lhe histórias todas as noites, às escondidas da mãe e do pai. Mesmo num dia em que o seu irmão mais novo lhe perguntou o que estava ela a fazer lendo assim uma história, para cima da mesa, ela não lhe disse nada do segredo, o segredo que gostava de guardar só para si. Tinha medo que não acreditassem que tinha trazido uma árvore de fruto para dentro do quarto, frágil servo em frágeis mãos. E agora saltam maçãs de dentro da gaveta.

domingo, novembro 09, 2003

tomates

Coçava os tomates enquanto olhava para o outro lado da rua onde estava ela, na paragem do autocarro, a tentar abrigar-se de uma chuvinha de merda que caía aquela hora. Era sempre o mesmo ritual de final de tarde. Ela saía da boutique às seis da tarde e tinha autocarro às seis e um quarto. Eram sempre uns dez minutos que ela gastava ali sem fazer nada. Ele, a essa hora, saía sempre da oficina, que ficava em frente. E deixava-se ali estar durante aqueles dez minutos, a medi-la, a observá-la, a conhecer todos os seus gestos. Sim, ele já conhecia todos os gestos que ela poderia fazer. Até que ficou, como se diz?, levemente apaixonado. Como se existissem coisas destas assim leves.
Encontrou-a uma vez num baile. Uma festa onde ele ia todos os anos, com uns amigos lá da oficina. Era uma espécie de tradição. Ela estava lá, com as amigas e com o namorado. Sim, ao que parecia, ela tinha namorado. Mas o que pode fazer um namorado quando a paixão arrebata um homem embrutecido pelas circunstâncias da sua própria vida? Nesse dia ele ficou, como no resto de todos os outros dias anteriores, quieto. A observá-la. Ninguém reparou que, num determinado momento, ele colocou a mão entre as pernas e coçou os tomates. Isso faz tanta gente quando está assim, encostada, ao balcão do bar de um baile.
Quando o encontraram, ontem à noite, tinha uma enorme mancha de sangue na camisa, as mãos e a cara sujas de terra, o mesmo olhar vago de sempre. Estava à beira da estrada, perto do pinhal, à saída da cidade. Não disse nada, como nunca disse nada a ninguém. Era um tipo pacato, daqueles que nunca se chateou com ninguém no café, nunca bateu com uma porta, nunca levantou a voz para a mãe. Levaram-no para o hospital e esperaram. Um dos bombeiros que o levou escreveu no relatório que tinha achado estranho que o indivíduo, naquele estado, tivesse passado o tempo todo da viagem a coçar os tomates. O corpo dela foi encontrado de manhã.

sábado, novembro 08, 2003

o que eu acho

Quando me olhas assim sinto-me nu. E estar nu deixa-me profundamente desconfortável, ainda para mais à frente de alguém como tu. Confesso, contigo nunca tive nenhuma espécie de desejo sexual. Nunca pensei que podia sequer beijar-te. Não. Isso intimida-me muito mais do que aquilo que tu possas pensar. Portanto, contigo nunca pensei em nada. Estás demasiado próxima para que me permita a isso. Só tenho desejos sexuais quando tenho a certeza que eles não se vão realizar. Só penso em fazer amor com alguém que não conheço de lado de nenhum. E a ti conheço-te. Portanto não serves.

O problema contigo é esse teu olhar. Eu sei que tu também não queres nada comigo. Fazes isso só para me foderes o juízo. Eu encolho-me todo por dentro e ponho-me a andar pela rua ao meio da noite. Saio e está a chover. Gosto de andar de chapéu de chuva. Por um lado é útil, já se vê. E quando não chove marco o ritmo dos meus passos na calçada, com a biqueira de aço do chapéu. Acho que há pessoas que se assustam com isso. Mas não me importo, sabe-me bem. O problema contigo é eu ficar sem saber bem o que te dizer e acabar sempre por falar de outra coisa qualquer. Acho que isso te irrita.

Quando me convidas para irmos beber umas cervejas treme-me sempre o olho esquerdo. É o olho que me avisa dos perigos iminentes. Visto um casaco e vou ter contigo. Chegas sempre primeiro, tens sempre a chávena do café já vazia e fumas um cigarro nessa tua forma de não saberes fumar e a olhar para os gajos que entram pela porta do café. Eu sento-me ao teu lado e finjo que te falo de alguma coisa. A verdade é que dentro de mim sempre se exalta aquele gajo que não sabe sequer como pôr as mãos em cima do balcão. Aquele gajo que não sabe se deve beber o café segurando a chávena com a mão direita ou a esquerda. Eu acho que isso tu nem percebes. Ou então finges que não percebes e falas-me na mesma de tudo aquilo que te chateia ou que te leva às nuvens. És demasiado gente para mim, minha cara. E esse teu olhar. Eu acho que é um problema, mas o que é que eu sei disso, não é?

terça-feira, novembro 04, 2003

...

manuscrito encontrado entre papéis diversos, de autoria certificada, datado (provavelmente) de 1985.

" Hoje foi o primeiro dia de caça.
Eu vi muitos caçadores mas acho
que não apanharam nada porque
os coelhos são espertos.

Luís

para o avô Quim"


sem comentários.

segunda-feira, novembro 03, 2003

dizem que se pronuncia telefonia

Tenho debaixo da cama uma telefonia que só toca quando eu quero. Eu sei que pode não ser agradável para todos os restantes ouvintes, mas naquela telefonia mando eu. Tenho vinte e quatro anos e vinte quatro rosas enfiadas numa jarra. A telefonia tem um leitor de cassetes, o que só serve para enervar o meu vizinho do lado. Lamento ser um resquício de antiguidade neste tempo dos leitores de cd’s. mas a minha vida tem sido assim, sempre um passo atrás na tecnologia. E nem o facto de ter aprendido a escrever me pode servir de muito. Afinal, estou aqui fechado. Ou não?
Uma enfermeira tapa-me com uma manta. Pensa que tenho frio. Eu não lhe digo nada. Pagam-me para estar calado. Sê doido e cala-te, já dizia o capataz. Eu obedeço. Aprendi que é bom obedecer. Um gajo leva menos porrada e no fim até nos deixam ir tomar café lá fora à hora da bola. O gajo da tasca não aprecia mas entretanto já percebeu que eu sou normal. Só aqui dentro é que tenho que me fazer passar por assim-assim. Por isso ligo a telefonia às horas do relato. Para que toda a gente saiba que eu não respeito o silêncio. E depois fico três semanas de castigo, três semanas a ouvir relatos e terços. Gosto de ouvir o terço. É como um jogo que acaba a zero a zero.
Por cá chamam-me Zézito, no café Sr. Zé e lá em casa, onde eu já não vou nunca, tinham a mania de me chamar Afonso de Albuquerque. Eu sei, é estranho. Mas um gajo tem que ter uma imagem fria e insensível para ser alguém na vida, ainda que o projecto seja ser maluco. Quando ando de autocarro gosto de me sentar nos bancos de trás e de esticar as pernas para o lado do vidro. Mas eu já nunca ando de autocarro. Agora, ligo a telefonia e ponho numa estação esquisita. É como se andasse de autocarro, a ouvir música que não gosto. O gajo do lado queixa-se. Eu cuspo para o ar. Esta telefonia só toca quando eu quero.

domingo, novembro 02, 2003

papel de parede

Tinhas um copo, com uma ligeira porção de leite a tapar o fundo, sobre a mesa. Com os pés esticados sobre a mesa da sala, olhavas a televisão desligada como se passasse um filme daqueles que não gostas de perder. Tinhas as meias azuis calçadas. As pernas, pequenas e brancas, lisas como um lençol doce. Respiravas solenemente sobre a camisa verde que um namorado qualquer dos antigos havia deixado aí em casa há uns tempos. Tu respiras sempre solenemente.

A mão que abraça um prato de corn flakes parece tão frágil como os cristais que a tua mãe guardava com religiosidade no armário da sala de jantar e que só deixava que as visitas vissem ao longe. É essa mesma mão que usaste a noite passada para expulsar um gajo da tua área de acção num dos bares onde te prolongaste. A tua fragilidade só é comparável à ferocidade que aplicas nas tuas relações com as pessoas de que não gostas. E por isso, muitas dessas pessoas gostam de ti.

Se alguém te espreitasse pela janela, facto impossível na realidade, visto morares num oitavo andar, encontraria um bom motivo para um retrato à la Mona Lisa. Se fosse um pintor renascentista, talvez fizesse um esboço e te convidasse a posares para ele um dia mais tarde. Com os devidos arranjos, criar-te-ia um ambiente propiciamente clássico. Um impressionista talvez te oferecesse um déjeuner sur l’herbe. Eu ficava lá parado, inquieto, a olhar.

sábado, novembro 01, 2003

fragmentos da existência 01

Tenho a sensação de ouvir um barulho de água ao fundo do corredor. Não sei o que te traz até mim, mas tenho a certeza do que me mantém longe de qualquer tipo de decisão ou de acção sobre o mundo em que nos movemos. Tenho a sensação de ouvir o barulho da água e sento-me no chão, escorregando com as costas pela parede do meu quarto abaixo. Olho os meus pés descalços e tento perceber-lhes uma qualquer espécie de poesia. Muitos poetas escreveram sobre pés, sobre caminhos a fazer, caminhos que necessitam ser feitos. Eu não sei desses caminhos, mas tenho a certeza do que me mantém perto dos meus pés. Gosto de os observar descalços. Como muitos outros homens avalio algumas pessoas pelos pés. Gosto de os observar descalços. Raramente acho uns pés bonitos. De qualquer modo, seria incapaz de os tocar. Um sentimento de repugnância invada-me, associado a esse pensamento.

feedback

Naquilo, o fadista aparece a descer pelas escadas com um copo de vinho vazio na mão e o Nininhas, que estava a segurar o balcão da espelunca com o corpo envinhado, solta um grito à tarzan pela sala com tecto rebaixado e convoca toda a gente para uma rodada do que apetecer, vinho tinto, água pé, minis e o que calhar, que a vida não está barata mas se não houvesse pinga é que era mau. O Narciso, que tem cara de cu mas é bom rapaz, ofereceu-se este ano para orientar o serviço à condição de ser a patroa dele a fazer a feijoada que, historicamente, é sempre tarefa das irmãs do Carapau, que não deixam ninguém aproximar-se da cozinha e fazem uma feijoada de ocupar casa-de-banho por quinze dias. É claro que isto acabou em discussão e foi preciso fazer-se uma assembleia geral do clube para tratar das coisas da festa.
Hoje é dia de fados e guitarradas e a malta embezanou-se toda à hora do jantar. Os fadistas alindaram as gargantas na água pé e os guitarristas, que são gente fina e não gostam de confusões, afiaram as unhas no tintol. Enquanto foi chegando pessoal daqui e dali para ouvir o fado, o gajo do som encasinou meio auditório com uma apresentação das capacidades do feedback e começou o espectáculo com uma discussão de fadista-a-uma-ponta-da-sala contra gajo-do-som-na-outra-ponta com meia casa a aplaudir e outra meia a queixar-se do caldo verde. Foi bonito de se ver. A malta bebe.
A festa seguia rija e, naquilo, o fadista aparece a descer pelas escadas com um copo de vinho vazio na mão e o Nininhas, que estava a segurar o balcão da espelunca com o corpo envinhado, solta um grito à tarzan pela sala com tecto rebaixado e o pessoal pára por um bocado a ver aquele gajo aperaltado aos jigajumbas pelo meio da cadeiras, em carambola com cara de boca cheia e olho esvaziado de desvios, as mãos a segurar as ancas, qual peixeira da ribeira, apontando à porta da casa-de-banho e espetando uma valente cornada na parede qual campino em vésperas de tomates de boi para o lanche. O Garibaldi, que estava desde o início do parágrafo a emborcar um copo de tinto pelas goelas abaixo, assusta-se com o estrondo e deixa que os últimos nove centilitros da vinhaça lhe escorram pelo pescoço abaixo até às golas da camisa e a Manela, que estava de serviço à quermesse, esposa de engomamentos categóricos, espeta um daqueles gritos, ò Manel olh’ éssa merda!, e a festa continua com a normalidade do costume

domingo, outubro 26, 2003

folha em branco

Não tenho o que escrever. Escondo-me dentro de mãos que permanecem vazias. Bebo das goteiras. Estou sujo. Sujo por dentro e por fora do que considero como meu, como eu. Os meus passos tornam-se incertos, de tão inseguros. O meu olhar esconde-se das ruas. Está sombrio o meu quarto. Perante a folha branca, papel imaculado, repousa uma caneta sem marcas digitais. Não tenho o que escrever, é só nisso que penso.

Insisto em não atender quem me telefona. Tenho medo do que me possam dizer, receio que me tentem animar. Pressinto que persigo algo que não está lá fora mas aqui, dentro de mim. Procuro uma palavra que trago guardada há imenso tempo. Como fazer emergir essa palavra, entre tantos silêncios escondida? Insisto em não atender quem me telefona, temo o lado de lá.

Não arrisco abrir as cortinas, nem a despir o casaco se saio à rua. Não arrisco um olá, nem um acenar de cabeça na espera do elevador. Para quê debitar palavras ao balcão do café, em frente do expositor das frutas no hipermercado? Eu procuro uma palavra que não há. E acabo arrancando os cabelos, não tendo o que escrever.



sábado, outubro 25, 2003

oh master, my master...

o que me intimida é o facto de quase nada fazer sentido neste mais que nada mundo feito de coisas nenhumas. tenho os pés gelados e o nariz pinga-me. na televisão passa um bailado qualquer que eu sei que é conhecido mas que agora não me lembro o nome. tento não me preocupar muito com isso. não me preocupo. aliás, preocupo-me. sim, a toda a hora. é impossível não pensar num monte de merdas que me sobem à cabeça como se eu fosse uma espécie de último-andar-com-vista-panorâmica-e-tudo-à-borla-para-toda-a-gente-ver-como-é-bonito-foder-o-juízo-de-um-gajo-como-eu. tenho três mil malucos à perna e só deus sabe o que isso me custa.
preferia não ter que te telefonar a toda a hora, até porque eu sei que isso te incomoda. ok. mas tenta perceber que essa é a minha forma de pedir ajuda enquanto eu sei que posso pedi-la. porque vai haver um dia em que eu já não vou conseguir pedir mesmo nada a ninguém. vai haver um dia em que vou estar a olhar para um livro e vai-se dar um grande estrondo dentro da minha cabeça. nesse momento, é com pena que eu o anuncio, vou ficar totalmente idiotinha das ideias. vou começar a babar a toda a hora (e não só quando adormeço no autocarro, como agora), vou andar tentado a colocar a mão no pénis em todo o lado (e não só no meu quarto, como agora), vou começar a verbalizar todos os meus pensamentos perversos e a dizer na cara das pessoas aquilo que eu realmente acho delas. depois, vão levar-me ao médico e vão dizer-me que eu estou oficialmente maluco. eu faço uma festa e acabo a noite a urinar em frente ao posto da psp (por simples descargo de consciência contra a ditadura de terem instalado o posto na rua onde eu ia sempre mijar quando o posto era no outro lado da cidade). e vão acabar por me fechar dentro de uma caixa de anti-depressivos. vai ser fixe, ver o mundo todo cor-de-rosa.
depois eu sei que as pessoas se vão queixar de me terem deixado sem assistência. eu vou-me sempre rir para todos os desconhecidos que conseguir e dizer que não, sempre me quiseram assistir, eu é que nunca deixei. não volto a ser chorão, ai, nem que me paguem. eu não me queixo do mundo. queixo-me é de mim. tenho calos nos pés e não me apetece ir ao calista. devo culpar o criador por isto? em frente à minha casa abriram uma loja de souvenirs para turistas. eu vou lá todos os dias comprar um postal da minha rua. não é que me façam falta, nem ando com um renovado interesse em divulgar a minha cidade aos correspondentes estrangeiros. mas sinto que entre mim e o mundo nasce a necessidade de me sentir desprendido do meu lugar. e compro postais como se fosse um turista. a senhora desconfia. mas tudo se permite a uma carteira. por muito estúpida que ela possa ser.

segunda-feira, outubro 20, 2003

Telefona-me

Estou aqui deitado a olhar para o telefone, deitado no escuro do meu quarto à espera que uma luz verde o invada e ele se encha do som irritante do telemóvel, irritante e, no entanto, sempre tão esperado, desejado, seja noite seja dia, à espera do sinal, do saber que vais chegar, do saber que ali estás, do outro lado, lá tão longe, mas ali, ali mesmo perto de mim. Telefona-me.

Estou sentado no sofá da sala, a olhar, entristecido, para a televisão, a brincar com o telemóvel na minha mão, deixo-o passear pelas minhas pernas, passo-a à outra mão, toco com ele nos joelhos, olho a televisão, mas depois também o écran do telemóvel, olho-o, inocente, como se sentisse que ia tocar naquele momento, como se te esperasse há muito tempo, eu espero-te há tanto tempo. Telefona-me.

Olho os jornais dos classificados pendurados na parede da biblioteca municipal, olho-os de uma ponta à outra, misturo-os com outros, passeio entre as fileiras dos livros, literatura, geografia, história, psicologia, filosofia, procuro as revistas, procuro as novidades, espreito os computadores, e o telemóvel no bolso da mala, a mão sempre a passar pelo forro, a tentar perceber se o modo vibração está a funcionar, a tentar perceber se alguém me vai falar, se alguém me vai dizer, seja o que for, seja o que for, seja o que for... Telefona-me.

quarta-feira, outubro 15, 2003

até que idade pensas constipar-te?

voltas a sair de casa depois de teres chegado do trabalho, com o saco do ginásio ás costas, e pensas pela primeira vez este ano que o tempo está a ficar frio quando anoitece. não te ralas muito. afinal ainda esta tarde estavam uns 27 graus.segues pelo passeio, ou pelo que sobra do passeio depois de todos os teus vizinhos terem estacionado o carro sobre ele. a esta hora pouca gente anda na rua, é a hora da novela, a hora do jantar, a hora da famí­lia. é claro que nada disso te interessa. vendeste a televisão por causa do empréstimo da casa, não costumas jantar por causa do ginásio e ainda vives sozinho. ainda, no sentido complementar da frase, porque, é claro, não te passa pela ideia voltares a viver seja com quem for.
tens 32 anos, exactamente a média de idades das catorze pessoas que partilham contigo a sala de cardiofitness. tens 1m79, acima da média de alturas que se situa no 1m69, principalmente devido a um grupo de divorciadas baixinhas que não pára de coxixar na máquina de remos. pesas 91 kg e é exactamente por isso que estás aqui neste ginásio. o teu médico mandou-te fazeres exercí­cio e deixares de fumar,para além de que também tinhas de fazer dieta e passares a ter refeições nutritivas. tu pensas que te chega vires para aqui três vezes por semana fazer olhinhos às meninas enquanto acaricias as máquinas a fingir que te esforças.
sais do ginásio de banhinho tomado e cabelo penteado para trás, a fazeres esses teus jeitos de playboy mal amanhado. já devias ter percebido que isso nunca resulta em nada. há mais de cinco meses que não convences ninguém a dar-te um beijinho sequer. não sabes já qual era o sabor dos últimos lábios onde te encostaste. sentes uns pingos de chuva sobre a tua camisa e pensas que afinal o tempo anda mesmo merdoso, como te tinha dito a Dona Amélia da limpeza lá do escritório.dizes mal da tua vida quando dois carros com condutores de pouca civilidade te fazem parar à  beira da passadeira. e sentes que o frio te começa a incomodar a toda a longitude da coluna, enquanto te encolhes todo para passar entre a frente do carro do gajo do 2º esquerdo e a parede, mesmo à  porta do teu prédio, onde fazes ATCHIM!

segunda-feira, outubro 13, 2003

quarto

passei o dia todo a pensar que tinha que arrumar o quarto. não um pensamento simples ou fugidio, nada disso. desde o momento em que acordei logo se assomou à minha cabeça a ideia de arrumar o quarto. não uma ideia pacata ou benemérita. o que se passa é que encaro o arrumar o quarto como uma necessidade premente da minha sobrevivência, uma problemática suma do meu existencialismo privado neste dia de outono. em todos os telefonemas que fiz, em todas as conversas que tive, em casa ou na rua, em todo o lado, referi a necessidade de ter que arrumar o meu quarto como elemento primordial da minha existência, não para hoje, mas para a eternidade, para todo o sempre.
eu sei que pode parecer idiota, eu sei que muita gente pode não me compreender, mas a verdade é que arrumar o quarto é algo que me incomoda sumamente. apesar de eu, exteriormente, parecer uma pessoa totalmente banal, apesar dos meus interesses se basearem na importância das filosofias de vida orientais ligadas ao funcionamento artístico de uma sociedade cada vez mais impregnada por necessidades consumistas, apesar de eu preferir ir ver peças de teatro pós-moderno em detrimento de sair com amigos para um café beber imperiais e ver o futebol, apesar de tudo isso, apesar de acreditar que o mundo espiritual é bem mais forte do que qualquer emoção carnal que eu possa ter, eu acho que hoje nada é mais essencial para mim do que arrumar o meu quarto.
quantas noites de amor foram passadas sobre aquele colchão, quantos poemas escritos naquela secretária, quantos cigarros fumados com os cotovelos apoiados naquela janela, quantos telefonemas eróticos abafados pelo escuro da luz apagada, quantos livros lidos imaginando que estava à luz de velas, quantas promessas de " a partir de hoje nunca mais farei isto" e " a partir de hoje farei sempre aquilo", quantas coisas indizíveis e quantas delas enumeráveis, quantas coisas ali se passaram que ninguém nunca vai saber, quantas, quantas, quantas. e, apesar dessa importância se ter tornado num sintoma de uma doença qualquer contra a qual me parece impossível precaver, não procuro outra cura senão a arrumação in loco do meu quarto. e mesmo assim deixo-o desarrumado.

sábado, outubro 11, 2003

qual é o teu desconhecido preferido?

a coisa mais próxima do amor que eu conheço é um abraço a uma desconhecida. é fechar-me dentro de um quarto com alguém que me incita ao beijo. é poder ser livre de pensar aquilo que eu quiser sem ter que planear consequências ou sem temer o que vai acontecer amanhã. porque amanhã já não existirá nem o amor nem o abraço. tudo o que fica é um licor doce que me escorre dos lábios, sedentos que estão de serem beijados. e que assim se perduram pelos dias em que me apago.
a coisa mais próxima do amor que eu conheço é um quarto vazio. onde as paredes são quentes e os cabelos sedosos. onde os olhares já se apagaram por detrás das lentes escuras dos óculos e as cadeiras se colocam nos locais previamente encenados. onde há música e onde a vida é tão lenta que só nos resta saboreá-la. e depois as palavras, a voz como as paredes, a pele como os cabelos, as mãos que se deviam ter tocado, os lábios que se deviam ter conhecido.
a coisa mais próxima do amor que eu conheço é ver-te sentada no chão a pedir-me para sair. é poder voltar a abrir a porta apesar de todo o meu corpo querer ficar. é descer as escadas com a sensação de inacabado. com o desejo todo por explorar. com a vontade toda a explodir dentro de mim. a coisa mais próxima do amor que eu conheço é ficar sem saber como responder ao teu carinho, à tua doçura. porque tudo isso me transporta para onde eu não sei estar.

sexta-feira, outubro 10, 2003

say cheese...

este aqui sentado sou eu, a fazer de mim mesmo, como se eu estivesse sentado em frente ao computador, como se o mundo da internet realmente me interessasse, como se a tua conversa me parecesse interessante. este aqui sentado sou eu, entre duas raparigas que ou desconheço ou conheço pouco, com quem tento manter uma conversa minimamente desinteressante, tendo em conta o estranho evoluir das coisas neste mundo que construo como se eu pudesse construir fosse o que fosse.
este aqui sentado sou eu, na mesa de uma esplanada, a conversar, como se eu conseguisse ler a mente das raparigas e como se eu percebesse tudo aquilo que elas dizem. eu aqui sentado, entre as duas raparigas, a fazer cara de entendido, como se eu já tivesse passado por todos aqueles problemas umas vinte vezes, como se eu soubesse o que as mulheres pensam e como se eu soubesse o que os homens pensam, puxo o tema do sexo, não que eu o queira com alguma delas (não, não quero, o sexo causa-me alergia), mas só porque me parece interessante fazê-las falar do que, à partida, elas não falariam à frente de um homem.
este aqui sentado sou eu, a ouvir o vento a soprar nos meus ouvidos, a tentar manter os olhos abertos, a querer dizer que alguém estará aí para mim quando eu sair daqui, da fotografia. sim, porque a vida nas fotografias pode tornar-se bastante desinteressante. um gajo senta-se, sorri e pronto, fica ali para a eternidade, ou pelo menos para aquilo que se pode entender por eternidade quando lidamos com papel fotográfico kodak. este aqui sentado sou eu e ao meu lado duas raparigas, em frente ao computador e na esplanada, sem eu saber porquê, pois eu nem as conheço. este aqui sentado sou eu e se estivesse aí de fora chegava a fotografia mesmo à lente dos meus óculos para tentar descortinar quem elas são. e talvez visse que afinal as duas dos computadores não são as duas da esplanada. e talvez pensasse que afinal, para mim, que estou aqui sentado, isso não interessa mesmo nada.

quinta-feira, outubro 09, 2003

"eu vim de longe, de muito longe..."

abri muito os olhos quando te vi em frente à  minha porta. não estava nada à espera que aparecesses. já há uns dias que não telefonavas, nem mensagens nem mails, nada. dantes ficava preocupado, mas agora já nem isso. já não me interessa. deixo que vás e venhas ao sabor dos teus estranhos desejos. eu fico aqui em casa, normalmente sentado na poltrona que era do meu avô, a perceber o sol a atravessar-me as janelas e a penetrar na minha sala como ponteiros de relógio. fico aqui em casa a ouvir aquela rádio velha que já vem desde sempre acompanhando os maluquinhos da famí­lia. tu, quando apareces, é sempre assim, sem avisar, procurando sempre a surpresa. eu abro muito os olhos quando te vejo.
já nem me lembro muito bem do dia em que te conheci, embora traga sempre tudo registado num velho caderno de capa dura que tenho na mala. não que eu escreva tudo o que acontece comigo. mas pelos menos registo algumas das impressões que vou tendo da vida. acho que deve haver alguma coisa sobre ti nesse caderno. aliás, tenho a certeza de que há. só não me lembro muito bem do dia em que nos conhecemos. talvez tenha sido um dia de sol, talvez tenha sido um dia de chuva. deveria fazer imenso vento lá fora. mas não foi na rua que nos conhecemos. acho que foi num quarto de hotel. não sei bem como me deu a vontade de bater naquela porta. mas sei que abri muito os olhos quando te vi.
agora que aqui estás fico na dúvida de te mandar entrar ou de sair contigo. não sei como seria ter-te aqui em casa. fico sempre nervoso quando estou à tua frente e não sou capaz de deixar de olhar os teus olhos. é-me estranho este arrebatamento. mas não, não estou apaixonado por ti. nem seria capaz de te propor fosse o que fosse. sinto-me tão mal na nossa intimidade inexistente. acho que o melhor é levar-te para uma esplanada, um sítio onde eu possa ficar a olhar-te através dos meus óculos escuros. pois foi. quando eu te conheci, estavas de óculos escuros. mas as luzes estavam apagadas. como eu te compreendo.

quarta-feira, outubro 08, 2003

Observar

Eu sou a primeira pedra. E daqui, vejo tudo o que há para ver. Vejo o vazio que se preenche. A nuvem que desaparece e se transforma. Em chuva. A chuva que alimenta, cria, faz nascer. Tudo o que cresce. E nasce e morre. Tudo o que é vida. E que, sendo vida, depois dá vida a tudo o que é pedra. Como eu sou.

Eu sou o primeiro olhar. O que está para cá do conhecimento. O que ainda não viu. Mas que se vai descobrindo na observação. Sou aquele que ganha espaço no espaço dos outros, na visão transformadora. Naquilo que cresce do que não há. O hábito da dúvida feito lógica do empreendimento. Eu sou o primeiro olhar.

Eu sou o que está de fora. Para tentar ver o que ainda não foi visto. Por estar ao lado. Por estar de lado. Penetro no desconhecido que é teu íntimo. Sem incomodar, uso só o olhar. E depois, fabrico-me a partir de ti. Naquilo que te roubo. Naquilo que te ganho. Mesmo que sem te tocar. Porque. Eu sou o que está de fora.

domingo, outubro 05, 2003

olhar

Tu sabes que as pessoas esperam que faças coisas bonitas. Ao fim de uns tempos, começaram a pensar que tu és capaz de tudo isso. Há quem pense que és brilhante. Há quem te veja a brilhar. Há quem desespere por um sinal teu. Não um piscar de olho, não. Uma palavra. Uma história.

Gostas de ficar a pensar nas possibilidades do mundo. Procuras sítios silenciosos. Locais onde possas ficar a observar todo o tempo que te apetecer. Pontos onde possas viver-te. Porque no fundo é isso que te interessa. Um suave egoísmo percorre-te por dentro. Agrada-te que o consigas transformar em palavras. Agrada-te conseguir oferecê-las aos outros.

No entanto, há quem não perceba. Não é fácil perceber que a história nasce do pormenor. Nasce de qualquer coisa que mais ninguém viu, senão tu. Nasce do momento em que, sem qualquer explicação plausível, percebeste que era possível fazer nascer palavras de um olhar, de um suspiro, de um movimento, de uma situação.

Pedem-te verdade naquilo que escreves. Mas que verdade podes tu oferecer senão a verdade da ficção? A verdade da pequena mentira que criaste? E esperam que tu faças coisas bonitas. Quando tu só esperas conseguir contar mais uma história.

quarta-feira, outubro 01, 2003

análise do poema

man, ouve lá bem, a malta não curte poesia, ok? deixa-te dessas merdas, de poeminhas do caralho e foda-se, meu, ainda por cima, eu vou-te dizer, caralho, vou-te dizer, se ainda fosse um poema de amor, uma coisa que desse para mandar por sms para a garina, é pá, meu, isso sim, isso era serviço público, caralho, sempre ajudava no engate e nessas cenas. agora poemas daqueles, meu, aquela merda parece masturbação intelectual, caralho, aquilo quer dizer alguma coisa, meu, achas mesmo que quer dizer alguma coisa? cum caralho, pá, tu és mesmo uma desilusão. vou ser sincero contigo, caralho, a malta até te curte. é pá, podes não ser boa onda, podes ser meio esquisito, mas a malta até te curte. agora, escuta-me isto, caralho, diz qualquer coisa que um gajo perceba, foda-se, tens que dizer cenas que um gajo ache graça, que um gajo curta, cenas fixes, meu, nada dessas merdas esquisitas de poemas.
é que estás a ver, eu até andei aí­ a dizer bem de ti. foda-se, andei mesmo. cum caralho, a dizer ao pessoal, vejam lá aquela cena, tem umas coisas fixes, pá, tem umas histórias do caralho, meu, andei a dizer bem de ti, a falar das cenas de foda que tu escreves e das cenas de porrada e o caralho, e agora, meu, metes-te nesta merda, meu? foda-se, pá, eu andei a dizer bem de ti e agora a malta vem cá ver e tens aqui esta merda? o que é que vão dizer de mim, caralho? o que é que tu achas que o pessoal vai dizer de mim? é que não estás bem a ver, meu, não estás nada bem a ver esta merda. tu vês bem as porcarias que escreves? tu vês mesmo bem as merdas que escreves, caralho. lê lá, meu, lê lá aquela merda. vou-te só dar dois exemplos, meu, dois exemplos. anal. queres que eu sublinhe? ANAL. meu, anal é levar no cu, meu, levar no cu. achas que o pessoal acha graça a isso? achas que sim, foda-se, achas que tem alguma piada essa merda, maricas do caralho? foda-se. outro exemplo, onde está a freira em nós? a freira? A FREIRA? cum caralho, que piada é que essa merda tem. primeiro levar no cu, depois freiras. meu, freiras são velhas, feias, chatas. não estão in, não são cool. que merda meu. e eu andei a dizer bem de ti. dessa merda não me esqueço.cum caralho.

terça-feira, setembro 30, 2003

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Manda. mas anal quem sou ?

Fashiongrafia. onde não está a freira em nós?

Imago,

Lx, terei directo (devia)?

Tipo

SoHo!
que busco eu, pá? além de mim esse passo sem fundo.

brazeiro

sorrio no escuro do meu quarto. Escorrendo-me o suor pela face, é em ti que penso, mais uma vez. Deixo-me facilmente envolver pelos recursos da tua voz, pelos teus argumentos cheios de um amor que reconheço na palma das minhas mãos...
sabes?
nunca te disse isto. era eu pequeno, alguém me leu a sina. disse-me que acabaria por encontrar na minha vida alguém cujos nomes próprios teriam como iniciais * e * . nunca levei isso muito a sério, apesar de ser claro o desenho do * na minha mão esquerda e o desenho do * na minha mão direita. todas as ** que eu conhecia eram pessoas sem interesse, pessoas que,tinha eu a certeza, nunca na vida poderiam ser o meu fim.
reviro-me mais uma vez na cama. é impossível para mim conter uma forte erecção sempre que penso em ti, sempre que falo contigo. às vezes apetece-me falar-te de um poema, de uma impressão, de uma nuvem. mas é impossível conter o desejo que sinto por ti, impossível ignorar o desejo de te ser. tento disfarçar. mas não aguento. desejo-me ser parte de ti.
agora que apareces, * *, volto a recordar o momento em que era pequeno e me disseram que chegarias. não sei se servirá de alguma coisa, forçar-me a reviver esta incoerência de procurar uma validade cósmica para os meus sentimentos. olho para trás, como que a tentar perceber onde tudo isto começou, e encontro * * no início da linha, uma * * que ficou lá atrás mas que serve ainda, sempre, de marca de um eu que está aqui, em construcção, para ti.
masturbo-me em frente á tua imagem feita nos meus sonhos. não sei porquê. é sempre assim.

quinta-feira, setembro 25, 2003

como dizer neurótico em alemão, foda-se

encontrei-o a passear sozinho na rua às 3 ou 4 da matina, andava eu meio perdido pelas ruazinhas pequenas da parte velha da cidade à procura de alguém que me pudesse arranjar um cigarro. parei o carro e deixei-o ficar quase preso contra a parede. baixei o vidro e disse-lhe que vinha em paz. o gajo sorriu, meio aliviado. será que tens um cigarro que me arranjes? o gajo riu-se outra vez. achei que aquilo não tinha piada nenhuma. era tarde, estava frio, tanto eu como ele deveríamos estar a caminho de casa. eu tentava despachar a cena e ele só se ria. mandei-o pró caralho e arranquei. no entanto, vi pelo retrovisor que o gajo se tinha posto no meio da estrada a acenar-me, como se eu estivesse a partir de viagem para muito longe. Travei e fiz marcha-atrás. voltei a fazer-lhe a mesma cena, de vidro aberto, será que me arranjas um cigarro, caralho, arranjas ou não? o gajo balbuciou umas quantas palavras. não percebi nada, o cabrão era alemão.
mandei-o entrar para o carro e continuei na minha busca por cigarros, agora com a complementaridade de também procurar cerveja para o sacana do camone que trazia comigo. o gajo fartava-se de falar coisas que eu não percebia. ao fim de uns tantos quarteirões encontrei um bar de alterne que talvez nos pudesse salvar. olhei pra ele e, amigo, não é grande coisa, mas a esta hora ninguém nos arranja melhor. pelo menos era um sítio limpinho, apesar de os preços serem o que são e de termos que aguentar com umas quantas brasileiras a imitarem as gajas do canal 18. pedimos duas cervejas e um maço de cigarros. o alemão ria-se e falava comigo como se eu fosse da terra dele. eu bebi o meu copo sossegado e fumei dois cigarros. o gajo insistiu em pagar-me outro copo e eu não tive como recusar. o gajo falava, falava, falava, e embora eu não percebesse patavina do que ele me queria dizer, acenava a cabeça e comecei a ver que o gajo estava a contar-me a vida dele. és um existencialista de merda, disse-lhe. o gajo ria-se e continuava a falar. parecia ter uma perspectiva bastante irónica das merdas todas que lhe tinham acontecido na vida. seriam talvez as mulheres e os empregos e essas tretas que a malta tem a mania que servem para nos fazer pensar e até, para os mais complicados, sofrer. continuamos a beber e o gajo quase que chorava. quando o dono do bar nos mandou embora, o gajo enconstou-se à parede, já na rua, a chorar baba e ranho e a dizer coisas que, não sabendo o que era, me parecia fodido. fico sempre irritadiço quando tenho sono. peguei-lhe na cara e disse-lhe, amigo, sabes o que tu és? tu és é um granda... granda... o gajo não me percebe, filho da puta, mas será que alguém me ensina como dizer neurótico em alemão?

quarta-feira, setembro 24, 2003

como dizer neurótico em alemão. 1ª lição

a sério que levavas a mal se eu te partisse a cara? não, diz-me a sério, levavas a mal se eu desatasse para aqui a dar-te pontapés nessa boca de palhaço? não faças essa carinha de quem está a controlar, ó estúpido. e se eu te desse com as costas da mão na fuça, te partisse esses óculos de paneleiro em dois e te esmurrasse o nariz em pedacinhos? não achavas bonito? não te ia parecer interessante? vá, fala!! não fiques só aí a olhar com o teu aspecto de tanso. estás todo cagadinho, não estás? é que é fodido, é mesmo muito fodido. eu vir-te encontrar aqui, onde ninguém acha que vai encontrar alguém. vens tu de tão longe, lá do meio dos teus sonhos de paneleiro do caralho, e encontras-me logo ao virar da esquina. ainda por cima, de manhã! alguma vez pensaste que eu vivia de manhã? claro que não, a gente encontra-se sempre de noite. é sempre de noite que eu te chateio os cornos para te pedir uns trocos. é sempre de noite que me meto com as miúdas que tu convidas para sair. é sempre de noite que eu as fodo, também. sim, fodo-as. tu sabes bem disso. fodo-as todas. todas aquelas com quem tu és incapaz sequer de trocar um beijo. e sabes porquê? porque tu és um merdas. tu não vales para nada. tens a mania que és esperto, que és estudante, que és "interessante", coitado, um borra-botas destes, a pensar que é "interessante", mas tu já te viste bem ao espelho? tu já te viste bem ao espelho? eu digo-te o que é que tu podes ver num espelho, ó estúpido. para começar, és gordo. sim, és gordo. feio. horrível. andas sempre com a barba por fazer. se isso te ficasse bem, mas, não, só acentua o teu aspecto de merda rala. os olhos são pequeninos, quase sempre fechados, ou pelo menos parecem quase sempre fechados, nem dá para ver se são verdes ou azuis ou castanhos. provavelmente são cor de merda, que é aquilo que tu és. depois há o teu cabelo. ou o que resta dele, meu cabrão. tens o pavimento capilar mais liso que uma pista de fórmula um. sobram-te umas escapatórias de cada um dos lados, parecem aquelas merdas para aquecer as orelhas. sim, porque tu deves ser friorento. todos os maricas são friorentos. é uma castigo divino. és fraco, mariquinhas, toma lá com o frio que é para ver se espertas. mas tu nunca espertas, doutorzinho de merda. e não é por mudares de bairro que agora ias conseguir safar-te de mim. sim, porque eu tenho que viver na mesma. e o que é mais engraçado, é que, se eu tenho que fazer uns quantos querteirões para te vir encontrar, o melhor é que me dês mesmo toda a massa que tens aí nessa tua carteirinha de menina. sim, meu cabrão, vais dar-me o teu dinheirinho todo, que é para não haver chatices, percebes? ficamos todos amigos e ninguém se magoa. percebeste, ó monte de merda? estás a entender? ou queres que eu te faça um desenho em alemão? pisga-te, filho da puta. até para a semana.

terça-feira, setembro 23, 2003

que chatice, Clarisse

deixa-me que te diga que assim não vou aguentar muito tempo contigo. eu já me conheço e já te conheço, posso dizer-te com alguma segurança que, pelo caminho que estamos a levar, isto não vai chegar longe. podes dizer que é defeito meu, podes acusar-me de ter mau feitio, podes fazer o que quiseres. eu já sei como é. e depois não venhas com aquelas histórias do "ao menos podias ter avisado", aquelas tretas " se tivesses dado um sinal". eu sou o sinal. olha bem os meus olhos e vê o que eu te estou a dizer. isto vai dar merda, asseguro-te que vai. a ti, só te resta acreditar. em mim.
eu sei que tu colocaste muitas esperanças nesta nossa relação, que tiveste que convencer os teus pais de que eu não era mau rapaz, que disseste a toda a gente lá na tua escola que eu era o máximo, e te tratava muito bem, e te levava a todo o lado, e fazia isto, e fazia aquilo, eu era mesmo muito bom. eu sei que gastaste um monte de massa a mandar sms para aquelas cenas que passam nas televisões, no sol música, no big brother, até para o programa do goucha mandaste cenas, eu deitado no sofá da sala a tentar perceber que tipo de anormal estava a ser entrevistado e a ver passar na parte debaixo do écran, LUIS AMO-T MT ÉS O MÁXIMO QUERO SER SEMPRE TUA Clarisse, Alcoutim, eu a sentir-me adoentado, uma espécie de febre a crescer-me nas têmporas e sms no meu telemóvel ESTÁS A VER A TVI, MY LOVE?, essa tua mania de usares sempre e exclusivamente as maiúsculas do aparelho.
e agora, se bem que me invada uma certa tristeza por te ter que dizer isto, a verdade é que isto não vai dar. não é que eu não aguente a pressão de andar a namorar contigo, a sério, não são os outros, não são os "outros" também, porra, não são os meus amigos do cineclube, nem a malta do café do Zarolho, nem os meus pais, nem a minha mãe, não é ninguém. és mesmo tu. porque tu és uma chata e fazes um monte de coisas que achas muito fixes sem sequer pensar se eu me sinto confortável com isso. tu és toda "ele é o máximo, ele é tão bom, eu quero tanto, eu gosto muito" e depois baixas os olhos e segues em frente, estilo cortador de relva, sobre mim. eu não gosto de ser atropelado, eu não gosto nada de ser atropelado. beijo.

domingo, setembro 21, 2003

o blog dele

já me liguei umas dezenas de vezes no blog do gajo desde a última vez que lá deixou uma coisa nova e o cabrão nunca mais renova o texto que lá tem. é sempre assim, aquele filho da puta. vem com falinhas mansas, com ideiazinhas, com coisinhas boas e depois, trás!!!, desaparece, deixa de escrever, deixa de dizer seja o que for, deixa de mandar mensagens, toques, nada... aquele cabrão.
sinceramente, estava muito melhor quando não o conhecia. era uma rapariga mais calma, mais ponderada. não andava com aquelas ideias estranhas que o boi me põe na cabeça. a falar-me de sexo ao ouvido logo no nosso primeiro encontro. depois as mãozinhas nas minhas pernas, a gabar-me a saia, a gabar-me o olhar. eu sei do que gosto. o pior é que ele também parece sempre saber do que eu gosto, o anormal. leva-me para o cinema e põe-se a tentar enfiar as mãos dentro das minhas calças. leva-me a passear e tenta violar-me sempre que encontra um pinhal. é um tarado. e consegue fazer de mim uma taradinha também. adoro aquele filho da puta.
depois no outro dia aparece-me no café todo contente, com aquela cara de parvo que começo a achar que lhe é característica, a dizer-me que tinha um blog, que ia ser fixe porque assim eu poderia saber sempre o que ele andava a pensar, prometeu-me que ia escrever muito sobre mim, contar as nossas histórias, a dizer-me que como éramos assim libertinos as pessoas iam gostar e talvez, depois, nos convidassem para fazer um filme ou assim. cabrão de merda, convenceu-me, nem sei bem porquê.nos primeiros tempos até que era engraçado, ver aquelas cenas que ele me fazia ali escritas no computador. mas depois o cabrão começou a escrever sobre cenas que nós não fazíamos. que era só ficção, que eram umas ideias... ideias do caralho. a verdade é que entretanto também deixou de ter tempo para ir ao café comigo, para me levar ao cinema, para essas merdas todas. e agora deixou de escrever no blog dele. o cabrão, o cabrão arranjou outra puta qualquer,foi o que foi... e eu a ligar-me dezenas de vezes àquela última frase... E seguimos caminho de volta para casa.

quarta-feira, setembro 17, 2003

eu sou o joaquim

eu a entrar na tasca, a olhar para os papéis colados nas prateleiras de vidro, debaixo de garrafas de whisky, licor, aguardente, um homem debaixo daquilo tudo, o cabelo oleoso, puxado para trás, com uns tufos a saírem detrás das orelhas, o bigode imprescindível e imponente, os olhos raiados de sangue (dos copos) e os papéis, temos pipis orelha bifanas, sanders de fiambre queijo mixta paio chouriçoo, dão-se alvíssaras a quem encontrar um cachorro de cor castanha clara, a bica custa 50 paus, 12 32 34 36 41 43 + 5 TOTOLOTO / 21 24 26 36 39 47 + 32 LOTO DOIS. Chego-me ao balcão, sento-me numa daquelas cadeiras desconfortáveis de tasca e o homem sorri para mim e diz-me, como se confidenciasse a descoberta da pólvora, Também temos marisco. Eu olho-o e digo, Marisco o caralho!
Tenho as calças todas manchadas de tinta, os pelos dos braços eriçados, as unhas todas cagadas. tive que trazer os óculos antigos para não estragar os novos, estou a ver mal como o caralho e ainda por cima estou com uma ressaca daquelas. ontem à noite fui sair com a Melanie, uma vizinha minha que nasceu na Bélgica e que é uma grande puta, adora meter-se comigo quando vamos no elevador, põe-se a fingir que me vai apalpar os colhões, eu rio-me para ela e digo no gozo, pas ici melanie, a gaja ri-se que nem uma tonta, e depois eu disse-lhe que se ela quisesse eu levava-a a uma  boite, e ela riu-se, vestiu um vestido cor-de-rosa, pôs uns saltos altos amarelos e fomos curtir toda a noite, a beber shots de vodka misturada com tudo o que se possa imaginar, e acabámos a foder no meu carro, tivemos que experimentar uns quatro preservativos antes de conseguirmos dar a queca, estávamos com uma bebedeira do caralho, o que valeu é que os broches belgas estão no topo da ranking, isso garanto-vos eu.
Nunca, mas nunca mais, dizer sim aos pedidos do Matraca, anda lá a casa só dar uma ajudinha a pintar o quarto da miúda, e depois é deslocar móveis, encaixotar bonecos e pintar sozinho o tecto daquela merda porque o Matraca tem problemas nas costas e o genro dele é baixinho e eu fodo-me sempre com estas merdas. ainda por cima, a meio da manhã a senhora do Matraca tem que ir trabalhar para a loja da irmã, faltou a miúda que fazia o controlo da caixa e o almoço foi atrás, comidinha o caralho, não havia nada nem para palitar um dente, Vai ali à  tasca do Seboso que o gajo tem uns petiscos porreiros, disse-me o Matraca quando já estava todo lampeirinho para ir tomar banho.
Então o cabrão vê-me naquele estado e põe-se-me a oferecer marisco, eu mandei-o para o caralho, o gajo riu-se e disse que também tinha testículos de boi, que o melhor era trazer um prato disso para eu os lamber. eu passei-me e apesar da dor nos cornos (dos copos) mandei-me para cima do balcão a ver se lhe acertava com os dedos naqueles olhos de cabrão e o gajo desviou-se que foi uma beleza, eu fiquei pendurado meio do lado de cá meio do lado de lá, o gajo espetou-me uma biqueira no nariz, foi cana para um lado óculos para o outro, o filho da puta do Seboso tinha sido jogador de futebol, quando era miúdo até marcou um golo na primeira categoria do Belenenses e depois andou por aí pelo Unidos, Cascalheira, Frielas, Musgueira, a ganhar taças de melhor marcador e diplomas de mau comportamento. Nem me lembro bem de como saí dali de dentro, só sei que quando acordei tinha o Matraca a olhar para o penso que me tapava mais de metade da cara e a dizer, ganda maluco que tu me saíste, e entretanto aparece a cara da Melanie por detrás do ombro esquerdo dele, a rir-se que nem uma tonta e a dizer-me, pas ici Joaquim.

domingo, setembro 14, 2003

Lamento de um adolescente aos peixes

porque ninguém percebe que a sazonalidade dos namoros adolescentes está directamente ligada à intervenção do sol na capacidade de raciocínio das miúdas. é verdade. o sol afecta-lhes o pensamento. é vê-las por aí, o ano inteiro, a passearem os livros de um lado para o outro, a dizer que têm que ir à biblioteca, e que lhes apetece ir ver um filme francês (só porque as estúpidas das irmãs mais velhas gostam de cinema europeu), e que o futebol é coisa de gente burra, e que lhes faz falta ler mais um livro de não sei quê porque um dia vão entrar na universidade e querem já saber tudo de muita coisa. é vê-las aí, o ano inteiro, e nós a penar...
Em compensação, no verão, o caso muda de figura. Não sei se é por acabar o campeonato e o benfica continuar a não ser campeão, mas os nossos desportos passam a ser os favoritos delas. O vólei de praia, o surf. é vê-las a largar os livros debaixo das toalhas e virem a correr para nos admirarem. nesta altura ninguém se rala com o filme francês (viva o american pie!), nem com a ostensiva estupidez dos caloiros nas faculdades portuguesas. a biblioteca fecha para férias e quem estuda no verão é porque deve ter problemas de pele. nesta altura, toda a gente namora. e há uma única razão. exprimindo-se o sol nos corpos das miúdas, uma vaga de calor invade-lhes as várias camadas da pele, o que causa uma enorme confusão nessas mentes adolescentes. Habituadas a ler nas revistas (pequeno sumário: ragazza, bravo, super jovem, 100%cool, o diabo a quatro) que o amor se anuncia com um calor acentuado nas bochechas, vêm-lhes a ideia de que tudo o que é rapazito na praia é o amor das suas vidas. prático, não?
e assim se explica o drástico aumento da solidão adolescente-masculina com a chegada de setembro. meus amigos, as noites ficam frias e ameaça chover. já não há forma atmosférica de disfarçar a nossa falta de jeito para conquistadores destes corpos nunca antes almejados. resta-nos cortar as madeixas louras e começar a preparar os cadernos para a rentrée no liceu. vamos voltar a ficar sentados no jardim em frente à entrada da escola a vê-las babar pelos namorados delas que, entre outubro e maio, são todos universitários e têm todos carros muito giros. entretanto, estreia um filme qualquer italiano ou alemão, e já não há sessão de dvd nem pipocas que as convençam. o que nos salva é que, entretanto, começou o campeonato.

sábado, setembro 13, 2003

velho 1 (edit version)

eu não gosto muito de falar, não gosto mesmo, até porque, a maior parte das vezes, também não tenho muita coisa para dizer. por isso o mais normal é verem-me sentado naqueles banquinhos em frente ao café central, entre os carros que passam e a sombra que, ao início da tarde, pouco me toca, mas que depois me vai encobrindo todo da cabeça até aos pés, e lá para o final da tarde, sinto uma alegre frescura que se me estende pela pele toda. como não gosto muito de falar, a malta vai-se sentando ao meu lado, sem dizer grande coisa, só um boa tarde em tom calão, enquanto eu aceno a cabeça e fecho os olhos que trago escondidos atrás dos óculos.
como podem imaginar, a minha vida não é nada interessante. desde que a fábrica fechou, lá em baixo, na cidade, eu não saio muito daqui. ando entre o café central e a minha casa. as coisas já não são como eram. aqui havia muita animação. a malta saía toda para a cidade, de manhã, era uma confusão de carrinhas e autocarros... agora não... sobram uns velhos, como eu, aqui sentados neste banco. estamos a ver os carros a passar. um ou outro fala da bola. eu não falo muito. fico a ouvi-los. não tenho muito para dizer.
aqui o banco do café central é que é um sítio bom para o que gosto de fazer. posso ficar sentado e vejo quase tudo o que se passa na aldeia. as pessoas que chegam e partem, as conversas das vizinhas, as discussões dos namorados...eu não falo muito e pouca coisa acontece na minha vida. mas tenho muita curiosidade pela vida dos outros.não sei porquê, cada vez mais gosto de saber o que fazem os outros, o que pensam os outros, o que sentem os outros. não sei se é por não ter mais nada que fazer. mas meto-me na vida dos outros. isto dantes era tão animado. e eu não tenho nada para dizer.

quinta-feira, setembro 11, 2003

david da holanda

podes não acreditar, benedita, mas eu queria ser um daqueles homens antigos que vestiam casacos cheios de peles e usavam uns calções muito largos, com uns collants esquisitos a tornar-lhes as pernas mais magras do que já eram e com uns chapéus largos a tapar-lhes todo o crânio. gostava de poder andar por ruas sujas em cidades portuárias da Flandres e pensar em como o mundo é redondo e do outro lado é que existem todas as especiarias que nos fazem enriquecer aqui neste porto onde os barcos chegam cheios de futuras fortunas e um magote de homens com doenças venéreas.podes não acreditar, benedita, mas era isso que eu queria, era isso que eu queria.
provavelmente tens razão quando me dizes que as minhas pernas ficariam ridículas nuns collants e que me falta já o cabelo para amparar um daqueles chapéus. provavelmente tens razão que se eu me ocupasse tanto tempo a passear pelas ruas sujas de antuérpia me faltariam depois as horas para podermos ir ao café. tens razão quando me dizes que, neste estado de século, não haveria sequer os cafés onde pudéssemos parar a conversar. mas para mim é tudo muito maior do que isso. para mim é ter o mundo inteiro ainda por descobrir, poder encontrar uma razão para viver mais forte do que eu e não ter que receber informação de cada vez que me sento na sala a descansar. provavelmente tens razão, benedita, mas para mim era poder ser tudo muito mais intensamente do que desta maneira.
e por isso mesmo, benedita, me apanhas aqui a olhar para os livros de história que o meu pai guarda na biblioteca. sinto-me bem a folhear esta minha vida que ficou por acontecer. e mesmo quando me apercebo que me espreitas pela porta, benedita, quando te oiço dizer, anda david, mergulho um pouco mais nas páginas onde posso sentir que o mar me vem beijar a pele ultrapassando todos os tecidos que o van Hoogdallen me preparou tão carinhosamente por sermos amigos desde pequenos. e tu a ficares impaciente (mas será que a Benedita é mesmo assim impaciente?), e a começares a ficar com as bochechas da mesma cor dos teus cabelos (pintados?), e eu a levantar a cabeça, finalmente, com um postal de mim mesmo como eu seria se pudesse ter sido aquilo que eu queria a tapar-me a face.

terça-feira, setembro 09, 2003

presença de álvaro de campos

ele só dizia, come chocolates, menina, come chocolates, e eu a tentar fugir daquela presença que a cada momento crescia mais para mim, aquela presença inquietante, imponente, forte como um furacão que, primeiro, vemos lá ao longe, bonito-calmo-silencioso, momento em que só nos apercebemos de um perigo distante e que nos permite manter calmos. depois deixamos que a coisa se aproxime, sentimos curiosidade perante tal força e quando nos apercebemos, meus amigos, quando nos apercebemos, já parece que é tarde demais.
porque o que parecia ser só uma presença, às tantas, já é um olhar que se fixa, come chocolates, menina, come chocolates, fala-nos, diz-nos coisas, obriga-nos a ir para casa pensar no que nunca existiu e que provavelmente nunca virá a existir. estamos todos no mesmo barco, eu sei, mas há presenças que nos animam mais que outras. um gajo distrai-se, pisca o olho e sente que todo o chão que o sustenta se esvai pelo ralo da sala. afinal nada daquilo era o que parecia, estavamos todos dentro de um tanque gigante e, com aquela corrente, eu vejo-me à rasca para nadar.
isto só me distrai, isto só me distrai, penso insistentemente enquanto, come chocolates, menina, como chocolates, eu a olhar para a tela onde passa o filme e a abstrair-me, mas os chocolates eram da nestlé, não, não podiam ser, chocolates regina, os mais antigos são os chocolates regina, mas desde quando é que eles existem, sinto o turbilhão que se apodera de mim e sorrio, olho pelo canto do olho (mas pelo canto do olho eu não vejo nada, a miopia, a miopia), há uma qualquer tensão dentro de mim que eu não consigo resolver, mas sou só um puto, sou só um puto, sou só um puto, e eu não como chocolates.
procuro uma avenida onde ela não existe e acabo sempre por me perder nos meus sonhos, trago pessoas para eles que não se compõem na minha vida real, interesso-me sobretudo pelo que não conheço. tento descrever no meu pensamento as características das pessoas, mesmo que essas pessoas não sejam nada daquilo que previa na primeira impressão. come chocolates, menina, come chocolates, um velho mascarado de álvaro de campos a tocar xilofone nas escadas do metro e, lá ao fundo, as saias de uma jovem a levantar voo por causa da chegada do comboio à estação. se tudo fosse tão previsível como são os chocolates, meu amor, não teríamos hipótese de nos sentarmos à mesa do café, parados, só a observar.

domingo, setembro 07, 2003

o mistério da masturbação

tenho as mãos sobre as minhas ancas. estou sentado no sofá da sala e olho para a televisão. no relógio estão marcadas 2h 39m. passeio os dedos da mão esquerda para o comando da televisão, à  procura de qualquer coisa. a mão direita vai passeando para dentro dos calções. páro num canal pornográfico que incluí no pacote da tv cabo. tenho-os todos. o private, o sexy hot, o playboy.vejo uma mulher de aparência perfeitamente fora do normal a contorcer-se pendurada num pénis enorme. ela geme muito, muito alto. ele tem um ar esforçado, concentrado no seu trabalho. enfio a totalidade da minha mão direita dentro dos calções, sentindo o meu corpo que se desperta.
puxo o pénis para fora e começo a acariciá-lo. aperto-o e liberto-o muito devagar. olho fixamente a televisão, desfocando por vezes aquilo que vejo. não há um mí­nimo de prazer neste gesto. é só algo mecânico e repetitivo. puxo pelo meu sexo e vejo-o crescer. mudo constantemente de canal para encontrar a cena que me vai fazer expulsar o sémen que me incendeia os sentidos. não sei como a descrever, nem sei bem o que é que ela é. mas sei que, no decorrer da mecanização dos gestos, eu vou-me sentir aliviado.
o suor escorre-me pelas têmporas. os olhos fixam a penetraçãoo que ocupa todo o visor da minha televisão. sinto que o coração se acelera, que a voracidade da minha carne exalta profundamente o controlo da minha razão. esfrego-me, esfrego-me com ódio por tudo aquilo que sinto. não consigo sequer perceber o prazer que isto algum dia deve ter tido para me fazer agora repetir o gesto interminável e frenéticamente. sinto cada vez mais próxima a ejaculação. sinto o sémen a correr-me já pelo pénis acima. e quando me venho, quando encho as mãos daquele líquido cremoso e alvo, mudo de canal e odeio-me. odeio-me como nos odiamos quando nos viramos para o outro lado da cama e adormecemos.

sexta-feira, setembro 05, 2003

bonzinho

visto um casaco velho que encontrei no roupeiro onde tinha guardado as roupas do meu pai e saio à rua a pensar que certas manhãs, como a de hoje, estão destinadas a levar-nos de encontro a pessoas estranhas. Não, não é o facto de tu seres um parente distante de uma amiga afastada que me apareceu anteontem no café a dizer que havia alguém (neste caso, tu) que me queria muito conhecer, que me tinha visto na televisão e me tinha achado o máximo. agora que ponho os pés na calçada, penso que se eu me fosse encontrar com todas as pessoas que me viram na televisão estava bem tramado. mas tu és o tal parente afastado da amiga distante e isso, acho eu, confere-nos uma certa proximidade.
combinei encontrar-me contigo naquele jardinzinho do cesário verde perto da estefânia. por lá estarei seguro. tem sempre um monte de pássaros para nos cagarem em cima, coisa que me faria dizer-te que o melhor era voltar para casa para limpar o casaco. depois também tem imenso transito ali perto, o que me confere uma certa notabilidade, eu sou o gajo que aparece na televisão e vai-nos ser impossível ter uma conversa sossegada. não sei porquê mas faz-me imensa confusão ter conversas sossegadas com pessoas que não conheço. estou numa fase em que me apetece passar largas horas fechado em casa, a admirar a solidão. ando com medo de ser reconhecido pelas porteiras todas da minha rua.
hesito entre ir a pé ou apanhar o autocarro. puxo os óculos escuros para cima do nariz (tinha-os na cabeça, a prender o cabelo) e vou andando em direcção à paragem. enquanto me aproximo vou estudando mentalmente a descrição que ela (achas possível que não me lembre do nome da gaja?) me fez de ti. alto, com cabelos castanhos bem despenteados, corpinho de ginásio e sempre vestido com calças de ganga muito coçadas e casacos claros. na paragem do autocarro está a filha da madrinha da minha irmã e eu aceno-lhe. decido ir a pé, não me apetece conversar com ninguém. enquanto te tento imaginar vem-me à ideia de que, pela tua descrição, eu devia imediantamente ter recusado o convite. podia sempre ter dito que já tinha combinado um encontro com outro gajo qualquer da televisão ou com uma daquelas gajas dos desfiles de moda. ficava-me bem e tu não levarias a mal.
tenho medo de estar a ser bonzinho. demasiado bonzinho para as pessoas que não conheço. e eu não gosto de ser nada que acabe com um diminutivo. gosto que as pessoas olhem para mim e tenham medo. que pelo menos fiquem na dúvida do que eu sou. à porta de uma tasca, já muito perto do tal jardim, um velho visivelmente com os copos grita-me, ó piu-piu da tvi, anda cá falar comigo. não sei porquê, páro a olhar para ele. tem a cara do meu avô, o sacana. anda cá, anda cá, grita ele. penso nas tuas calças coçadas e nos teus casacos claros. tenho mesmo muito medo de estar a ser bonzinho. entro na tasca e peço duas taças de branco.

quinta-feira, setembro 04, 2003

pássaro

quando eu olho para aquele pássaro morto, lembro-me sempre de ti, abraçada a mim, com o teu olhar mortiço e distante, de quem não tem nada para dizer. sim, és linda. mas acabas-me sempre por frustrar com a tua ausência de espírito. eu digo, beija-me, abraça-me, come-me. e tu, sempre igual, só fazes o que eu mando. não fazes nada que eu não diga para fazeres. e abraças-te a mim, com o teu olhar de quem já não está ali.
depois, eu sei, vais-te queixar de que eu sou um bruto, um insensível, um tarado. só porque te dou umas palmadas no rabo quando te fodo. só porque te peço para vestires roupas muito justas. quando te digo que era giro brincarmos aquele jogo que vimos na revistas, a história da encenação do enforcamento. estás sempre a incriminar-me de queres fazer algo completamente nojento. és uma púdica. e eu zango-me. e tu abraças-te a mim, com o olhos fechados.
e vem-me sempre à ideia aquele dia em que nos conhecemos. o dia em que te sentaste na mesa do café onde eu estava com o Dário. eras uma amiga dele do curso de não sei o quê. linda. fabulosa. e estranhamente curiosa acerca de mim. acerca das minhas manias de pintor.ai, um artista, que giro. e quando me incrimas de tudo e mais alguma coisa na nossa relação, eu sei que não percebeste nada da minha resposta. da resposta que eu te dei quando me perguntaste, qual a loucura que serias incapaz de fazer, e eu te respondi, eventualmente, a ternura.

terça-feira, setembro 02, 2003

[amo-te]

sento-me perto da janela, a olhar para o céu que hoje está inquietantemente azul. estou muito enconstado à parede. vejo que pássaros cruzam o topo do prédio de vários em vários minutos. tento ouvi-los. nem um som. o teu corpo continua sobre a cama. não sei o que fazer. acordei num dos cantos do quarto, encolhido, envolto de sangue e suor. cheiras mal, cada vez pior. deixo que o sol entre pelo quarto dentro, pretendo secar todo o sangue que ficou espalhado pelos lençóis, pelos móveis, pelo chão. como tinha o cabelo todo pastoso, decidi pegar na máquina e rapar partes do meu crânio. agora parece que transporto um simulacro de montes e vales em cima de mim. encontrei uma caixa com pinturas dentro da tua mala. pintei os olhos com um lápis preto, cobri as pontas dos dedos com verniz e risquei o meu peito com o que restou do teu batôn. fiz uns riscos assim como se fosse um guerreiro. sentei-me, então, perto da janela. a olhar para o céu. espero que alguém nos procure. nós íamos sempre ao café de manhã, antes de seguirmos cada um para o nosso emprego. de certeza que o senhor do café, o senhor não me lembro o nome, sentiu a nossa falta. um café, uma meia de leite e duas torradas para o casalinho. ele diz isso todos os dias. hoje talvez não o tenha dito. mas não vai ser ele que virá à nossa procura. pensará que estamos de férias. eu nunca lhe dirijo a palavra. é perfeitamente normal pensar que estamos de férias. e depois vai dizer àquela vaca que se senta sempre na mesa ao lado da porta que nós fomos de férias. e ela vai dizer que não. pois se eles têm o carro na garagem. mas nós podíamos ter ido com amigos ou de avião ou doutra maneira qualquer, sua puta! mas não. se assim fosse eu tinha-os visto. eu estou sempre à janela, vais estar tu a dizer ao gajo do café. e depois alguém nos virá tocar à porta e eu vou estar sentado junto à janela a olhar para o céu. alguém vai dar pela nossa falta. na escola, no emprego, alguém. alguém vai telefonar, tocar à porta. e eu sentado, sem atender. ninguém. alguém vai passar pelo café. se nos viram? talvez estejam de férias, mas a senhora, não, a puta da vaca que se senta na mesa ali da frente diz que não os viu sair de casa. e depois vai ser o teu cheiro. cheira mal que não se pode. deixaram o frígorífico a descongelar, de certeza. têm a carne toda a apodrecer. a carninha toda estragada, coitados. um dia ou dois para encontrarem alguém que nos conheça bem. alguém que se importe connosco. alguém que talvez abra a porta. têm a carne toda a apodrecer. pois temos.

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